Hugo Prata se tornou um especialista das cinebiografias dentro do audiovisual brasileiro. De cara, estreou na direção de longas-metragens com “Elis” sobre a genial cantora Elis Regina e protagonizado por Andrea Horta. Depois, roteirizou o documentário “Chorão: Marginal Alado”, documentário sobre o líder do Charlie Brown Jr. E recentemente esteve à frente de “As Aventuras de José & Durval”, minissérie sobre Chitãozinho e Xororó. 

Agora, o cineasta traz mais uma história de um importante nome brasileiro para os cinemas. Desta vez, porém, a trajetória é menos gloriosa: “Angela” mostra os últimos meses de vida de Angela Diniz, socialite morta aos 32 anos com três tiros pelo namorado Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como “Doca Street”. 

O caso entrou de modo infame para a história como símbolo do machismo na sociedade, afinal, a defesa do assassino alegou legítima defesa da honra para justificar o crime. O feminicídio despertou indignação nos grupos feministas no Brasil inteiro. 

Agora, a tragédia ganha as telas com Isis Valverde de protagonista em um drama que ainda conta no elenco com Gabriel Braga Nunes e Bianca Bin. O Cine Set conversou com exclusividade com Hugo Prata que falou sobre o principal objetivo do filme em um período tão importante sobre o tema:  

Cine Set – Qual sua primeira memória sobre Angela Diniz? E o que mais te chama atenção na história dela? 

Hugo Prata – A primeira memória vem da infância: lembro que a história repercutiu bastante na minha casa. Quando eu era garoto, morava em São Paulo e passava o verão em Cabo Frio. O julgamento, aliás, foi nesta cidade do litoral do Rio de Janeiro. Chamava muito a minha atenção assistir ao repórter na frente do fórum nas matérias da televisão, afinal, era um local que conhecia de passar por ali. Recordo também da forte repercussão junto à minha mãe e irmãs, sempre com bastante indignação em relação aos rumos do julgamento. 

Cine Set – Como Isis Valverde chegou ao papel? Ela sempre foi a primeira escolha? Soube que ela fez um teste para “Elis” que marcou você… 

Hugo Prata No “Elis”, eu tinha convidado a Andrea Horta para fazer o filme, porém, no meio do caminho, ela foi escalada para uma novela e eu a perdi. Foi necessário abrir testes para outras atrizes. A Isis foi uma das candidatas e fiquei muito, muito impressionado com ela na audição pela profundidade e o lado à flor da pele que ela traz para as personagens.  

Tempos depois, porém, a Andrea saiu da novela e pode voltar para o projeto. Em respeito às outras candidatas, fiz um teste com ela e a escalei para o filme. A Isis, entretanto, ficou na minha mente pela potência dramatúrgica que apresentou para mim – cheguei a fazer mais de um teste com ela. 

Quando decidi fazer “Angela”, ela foi a primeira pessoa que pensei até por ser mais a cara dela. Fiz o convite e ela aceitou imediatamente – isso lá em 2017. A Isis sempre foi minha Angela Diniz. 

Cine Set – Os primeiros passos do filme foram em 2017? 

Hugo Prata – Assim que lancei “Elis”, eu comecei a trabalhar no filme. Foi já em 2016, antes do #MeToo. 

Cine Set – Vivemos uma era muito forte do true crime com uma sucessão de filmes e séries sobre crimes reais. Há quem ache importante trazer debates sociais importantes a partir destes casos, enquanto outros analisam como uma simples exploração sensacionalista. Dentro disso, quais os maiores cuidados que você e Duda Azevedo tiveram ao levar “Angela” para a tela? 

Hugo Prata Meu interesse nunca foi pelo true crime. O foco, na verdade, era tratar sobre mais um grande nome feminino brasileiro. Tinha feito um filme sobre a Elis Regina e resolvi abordar a Angela Diniz.  

Vale destacar que, no início do projeto, não havia ainda esta febre do true crime. Fico até surpresa como isso ganhou uma relevância hoje em dia e salta na frente para algumas pessoas, mas, a intenção sempre foi outra. A história me chamou a atenção por trazer elementos cinematográficos e dramatúrgicos de amor e tragédia muito fortes.  

O interesse de recontar este caso também veio pelo fato da tese da legítima defesa da honra ter colado não apenas no primeiro julgamento como atravessou anos; as pessoas sempre que falam do assunto tocam na vida e no comportamento dela, caindo na estratégia jurídica de desqualificar a vítima e justificar o assassino. Daí, ouvimos de tudo: “porque ela usava o vestido assim”, “estava sempre com decote”, etc.  

Nunca concordei com esta argumentação, logo, o intuito era trazer esta história como um feminicídio. A principal motivação do filme era esclarecer este crime no sentido de que não importa como era a vida íntima dela, o que fez ou deixou de fazer, mas, que foi morta por um homem. Por isso, “Angela” descarta todo o passado dela e se concentra somente na relação dos dois. 

Cine Set – “O sorriso mais triste que já vi”. Assim definiu Isis Valverde sobre a Angela Diniz. Quão desafiante é transpor esta falsa felicidade para a tela? De que maneira você pensou em expressar esta dubiedade? 

Hugo Prata A tese dos advogados de defesa do assassino era de que a Angela Diniz era uma louca que estava se divertindo além da conta, aprontava bastante e mereceu morrer. Claro que não concordamos como isso; ela entrou frágil nesta relação e repleta de angústias e tormentos. Isso que a Isis fala está presente em depoimentos de pessoas citando que, atrás daquela mulher tão forte e exuberante, existia uma melancolia e tristeza. 

Este aspecto nos interessou bastante para o filme até como forma de fazer justiça a ela. Fomos tentar entender o que a atormentava; havia este vácuo informacional. Daí vem a sociedade machista, a exploração da imprensa sensacionalista e a distância dos filhos, pois, a Angela Diniz teve que ceder a guarda das crianças para poder ter o desquite. Tudo isso faz com que seja difícil de sair de uma relação abusiva quando você está dentro dela. 

Cine Set – Você dirigiu “Elis” e a série “As Aventuras de José & Durval”, além de ter roteirizado o documentário sobre o Chorão”. Pela sua experiência, qual o ponto mais forte que um autor precisa captar em uma cinebiografia? E o que pode colocar tudo a perder? 

Hugo Prata Aquilo que mais me interessa nestas histórias e elas têm em comum é que são heróis, símbolos com muita potência nas suas imagens públicas, mas, cada uma com seus tormentos. Não é nada fácil ser Elis Regina, Chitãozinho e Xororó, Chorão ou Angela Diniz. De onde eles partiram, o que enfrentaram e os fardos individuais são questões norteadoras nestes projetos. 

Em “Angela”, todo mundo sabe que ela era linda, maravilhosa, exuberante, mas, internamente, tinha angústias profundas. Gosto de mostrar na tela que estes ‘heróis’ são pessoas normais como todos nós com medos, problemas e dificuldades. 

Quanto ao que pode colocar tudo a perder, é deixar de lado esta carga dramática, focando apenas no que deu certo, ou seja, uma versão chapa branca. Nisso, lembro da Elis Regina: ela era bem-sucedida artística e financeiramente, três filhos, uma boa mãe, saudável. Difícil imaginar o que a atormentava. Parece que ela morreu se divertindo, mas, esta não era a realidade. Ela estava muito angustiada: assisti às últimas entrevistas da Elis e isso fica nítido. Meu maior receio ao fazer uma cinebiografia é não levar esta profundidade para o público.  

Cine Set – “Angela” chega aos cinemas em um momento de grande discussão sobre a cota de tela e uma situação difícil dos filmes brasileiros no circuito. Qual sua expectativa para o filme diante deste cenário? E como você avalia a questão da cota de tela após a última decisão vinda do Congresso? 

Hugo Prata – A cota de tela é fundamental e existe em diversos países mundo afora. Está cada vez mais difícil competir em um circuito que prioriza totalmente “Barbie”, “Oppenheimer” e o novo “Missão Impossível”. Chega a ser cruel essa disputa em igualdade de condições com as superproduções de Hollywood e todo o poderio de marketing delas. Logo, a cota serve para garantir a indústria nacional. 

Mesmo com uma boa aceitação do mercado exibidor, “Angela” está chegando aos cinemas sem cota de tela. Acredito que esta regulamentação que sempre teve precisa retornar para levarmos as histórias brasileiras às pessoas. Caso contrário, não se cria o hábito e ficaremos sempre à mercê de um filme dominando o parque exibidor inteiro.