O excelente Náufrago, de 2000, continua causando ótimas reflexões até hoje, mesmo após mais de 20 anos do lançamento. O filme, que nos entrega uma das melhores atuações de Tom Hanks, mostra um homem sem alternativas (exceto por sua solidão miserável) após sofrer um acidente de avião e ser o único sobrevivente. Inicia-se, então, um regresso para um intenso, profundo e doloroso processo de autoconhecimento.

Antes de prosseguir, vale ressaltar  a importância e relevância do conceito de ‘esperança’ dentro da nova realidade do personagem de Hanks, Chuck Noland. Segundo o psicoterapeuta David Richo, “esperança é sobre acreditar no potencial dentro de nós em uma vida que é maior do que o nosso ego limitado e amedrontado há estipulado; é uma sabedoria maior do que nossa mente pode alcançar e um amor abrangente, imenso. É um segredo enterrado dentro de todos nós esperando chegar à superfície quando mais precisamos dele; é um tesouro sem medidas”. Antes do acidente, Chuck não tinha tempo nem necessidade de esperança. Sempre muito ocupado e metódico, vivia a vida regulado pelas conveniências modernas, preso a horários e cronogramas.

A evolução pessoal e espiritual de Chuck é bem mostrada: vai de uma alegria e da risada marcante de Tom Hanks quando consegue fazer fogo até a tranquilidade para acertar em cheio um peixe já depois de um tempo na ilha. Abrimos parênteses aqui de como é importante certos conhecimentos prévios para lidar com situações inesperadas: o próprio trabalho de Chuck como responsável pelas entregas da empresa FedEx o ajuda a fazer cálculos, saber o melhor momento de arriscar a sair da ilha e até mesmo construir uma canoa forte o bastante para suportar a imprevisibilidade do mar.

Até onde ir pelo outro?

A relação construída por Chuck com uma bola de vôlei, chamada carinhosamente por ele de Wilson, mostra o quão é necessário para um homem relacionar-se com outrem. A bola, que também é uma projeção de si mesmo, já que ganha rosto, sorriso e cabelo com seu próprio sangue, a nosso ver é um dos motivos – se não o principal – que o mantém vivo e com sua chama – de madeira e de vida – acesa. A famosa cena em que Chuck dorme em sua canoa tentando sair da ilha e, quando se dá conta, perde Wilson, é uma das mais sensíveis do cinema. Em um ato de impulso, Chuck pula imediatamente na água para salvar aquele que foi seu confidente. Enquanto tenta resgatar Wilson, Chuck precisa fazer uma escolha: ou o salva ou se salva. A cena em questão é excelente para problematizarmos o difícil limiar de até onde podemos ir pelo outro. O pedido de desculpas junto ao choro devastador mostra que tal escolha nunca é tranquila. Uma cena simplesmente maravilhosa.

Razão, emoção e intuição por exemplo, são guias de nossas escolhas. Não há guia mais correto ou melhor; mas sim, aquele que nos é conveniente em dado momento. De qualquer maneira, há consequências para cada uma. Chuck naquele momento com certeza faz uma escolha pela razão, para sobreviver.

 “Quem tem um para que viver, suporta quase qualquer como”

A famosa frase de Viktor Frankl, psiquiatra e psicólogo falecido em 1997 que desenvolveu a Logoterapia, também pode ser associada ao filme. Tal abordagem psicológica fala sobre a importância de encontrarmos sentido em nossas vidas, mesmo e inclusive diante do sofrimento. Chuck guarda sem abrir apenas uma das inúmeras encomendas que chegam até a ilha com ele. Manter o compromisso de pelo menos uma entrega, aliado ao amor por Kelly (Helen Hunt) nos parece ser dois bons motivos para Chuck permanecer vivo e acreditar que poderia sair vivo da ilha.

Quando consegue reencontrar Kelly após de mais de quatro anos dado como morto, Chuck se surpreende ao vê-la casada e com filho. Mesmo dizendo a ele que é o amor de sua vida, fica muito claro que ali já não teria mais como reatar esse amor: a lacuna temporal e afetiva parece deixá-los impossibilitados de ficarem juntos. Por um lado, pensamos que poderia ser possível; por outro, nos caiu bem um desfecho inesperado ao entregar ao telespectador mais uma bela cena.

A expressão corporal e principalmente facial de Hanks ao final do filme em uma encruzilhada, ao som do aclamado Alan Silvestri, é de deixar qualquer um emocionado. Ao entregar a última encomenda, Hanks nos olha e parece nos perguntar: como seguir a vida, agora?

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