Sharp Objects – ou “Objetos Cortantes” – é uma minissérie limitada de oito episódios, baseada no romance da escritora Gillian Flynn (“Garota Exemplar”). A adaptação foi dirigida por Jean-Marc Vallée (do excelente “Big Little Lies”) e estreou na HBO em 2018. Produzida e protagonizada por Amy Adams, aqui a vemos em um papel denso e bem complexo, de uma repórter que precisa retornar à cidade natal para investigar dois crimes a pedido do chefe.
Bastante versátil, emotiva e extremamente talentosa, Amy Adams sempre se sobressai não importa qual tipo de personagem que interpreta – principal ou secundário. Nessa última categoria, notamos sua pequena, mas grande importânica em filmes como Ela (2013), Dúvida (2008) e O Lutador (2010). Mesmo com o recente, péssimo e vergonhoso A Mulher na Janela (2021), ela se destaca. Façamos ainda menção às suas marcantes interpretações em Animais Noturnos e A Chegada, ambos de 2016. Em Sharp Objects, no entanto, Amy Adams entrega, em nossa opinião, a melhor performance de sua carreira. Sim, somos fãs dela.
Já no primeiro episódio, notamos que algo não vai bem com Camille Preaker, a protagonista vivida por Adams. As dolorosas memórias de sua adolescência e o subsequente alcoolismo são peças-chave para entender a pessoa que Camille se tornou e são constantes durante toda a série. Nas cenas finais, vemos em destaque uma das inúmeras palavras que ela tem pelo corpo – vanish (desaparecer) – cravada por diversos objetos cortantes que fazem jus ao título. Deparamos então, com um outro grave problema.
O distúrbio Borderline
Acreditamos que a personagem Camille Preaker sofre do distúrbio Borderline. Autores como Gary M. Yontef (1998) confirmam nossa hipótese ao levarmos em conta os comportamentos da repórter. Yontef, discutindo a personalidade borderline, chama a atenção para o fato de que, neste modo de “estar-no-mundo”, o sujeito chega a perder, em alguns momentos de seu desenvolvimento, as fronteiras de tempo, de espaço e da relação com o outro. Para o sujeito borderline, há constante ameaça ou sentimento de abandono pelo outro. Em qualquer separação do outro, tais sentimentos se manifestam com muita intensidade. O bom contato é raro, já que “entregar-se ao outro” conduz facilmente à confluência, da qual ele precisa escapar rapidamente para não ser “engolido” pelo outro. Isso fica claro na relação com o detetive Richard Willis (Chris Messina). Quando estão prestes a formar um vínculo mais duradouro, Camille se afasta e acaba se relacionando com um dos suspeitos dos crimes, John Keene (Taylor John Smith), de 18 anos.
O sujeito borderline ataca o outro e tenta destruí-lo, mas tal ação provoca sensação de fracasso e de abandono. Yontef considera que o sujeito borderline expõe muito fácil e intensamente o seu drama existencial, o que não significa que consiga assimilação ou bom contato com o que expressa, pois a intensidade ocorre com os eventos imediatos e em um presente vazio, ou seja, na ausência de uma relação com o passado e o futuro.
Tal ausência é constantemente destacada na série pelos inúmeros (e muitas vezes, cansativos) flashbacks de Camille. São lembranças que a assombram frequentemente como se fossem fantasmas e que estão presentes em praticamente todos os lugares que ela visita na cidade, inclusive nos vários cômodos dentro da casa da mãe.
A mãe, na duríssima cena em que confessa à filha que não a ama, tem papel fundamental para o adoecimento de Camille, da filha já falecida Marian Crellin (Lulu Wilson) e ainda na caçula Amma (Eliza Scanlen). Adora, interpretada brilhantemente por Patricia Clarkson, incomoda com tanta entrega ao personagem da matricarca castradora, tirana e ainda portadora da síndrome de Munchausen – um tipo de abuso infantil. Essa síndrome se manifesta quando um dos pais, geralmente a mãe, intencionalmente causa sintomas de doenças na criança com a intenção de chamar atenção para si.
O pai, Alan Crellin (Henry Czerny), completamente submisso e passivo, dedica seus dias a envelhecer, ser condizente e escutar suas músicas preferidas na sala, se retraindo e evitando qualquer comprometimento na doença que toma conta da casa. Esse comportamento é notado nas várias cenas onde ele coloca fones de ouvido com a música bem alta para não tomar conhecimento do que está se passando ao seu redor.
Achamos importante também mencionar o papel fundamental de Amma na série – não pelo desfecho, claro, mas como a personagem se desenvolve no decorrer dos episódios. A irmã caçula de Camille está tentando ser uma adolescente em um ambiente sombrio e carregado. Em casa com a mãe Adora, ela se comporta como se fosse bem mais nova do que é; se veste como uma menina de 6, 7 anos e brinca com uma casa de bonecas. Fora de casa, quando sai com as amigas, bebe, usa drogas e flerta com um dos professores da escola. Amma é manipuladora, insistente e várias vezes perdemos a paciência com ela. Entretando, a personagem é essencial à narrativa da trama. Como explica Brian Tallerico, editor do site RogerEbert.Com, “Amma Crellin é uma vítima mas também é agressora; é criança e adulta dentro de um corpo confuso. Ela é Camille – a garota que escapou – e Marian – a garota que não -, ao mesmo tempo”.
É ainda curioso notar a presença do ventilador, em todos os episódios, em diferentes contextos e memórias. Nos dá a ideia exata do que acontece na vida de Camille Preaker: algo está em movimento e parado no mesmo lugar ao mesmo tempo, além do ventilador não ser suficiente para causar nenhuma mudança substancial.
Sharp Objects, além de todo o mistério que a envolve, é na verdade uma estória sobre trauma, ciclos de abuso e recuperação. Pessoas como Camille (e Amma) são tão danificadas psicologicamente que não sabem viver de outra maneira… só conseguem sentir algo através da dor que infligem em si mesmas (física e/ou mental). Ressaltamos que, apesar de excelente, é uma série bastante intensa psicologicamente e com uma carga emocional bem elevada – um prato cheio para os amantes de psicologia (e do cinema, claro).