AVISO: o texto contém SPOILERS
É curioso observar que, no filme Amor (2012) de Michael Haneke, a palavra-chave que dá o título à obra não aparece nenhuma vez durante seus longos 125 minutos. À medida que a história progride, vamos percebendo que se trata de um enredo simples (porém bastante denso emocionalmente) em que os gestos falam mais alto do que a palavra ‘amor’ em si.
Haneke escolheu tratar deste sentimento tão complexo através de um casal de idosos interpretados extraordinariamente por Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, que foi indicada ao Oscar pelo papel (e pasmem! perdeu para Jennifer Lawrence, um fato simplesmente inacreditável). O diretor já nos havia surpreendido ao abordar outros temas complexos como nos excelentes Caché (2005), Violência Gratuita (2007) e A Fita Branca (2009). A segunda cena de Amour é de uma sensibilidade magnífica: uma plateia com um olhar invertido está voltada ao mesmo tempo para nós espectadores e para o que estamos prestes a assistir, uma história de amor.
Trintignant e Riva são Georges e Anne, professores de música aposentados que moram em Paris e que levam uma vida tranquila. Mantém a vida cultural ocupada frequentando concertos, lendo e ouvindo música. Um belo dia, as coisas começam a mudar. Sentados à mesa conversando durante o café da manhã, repentinamente Anne fica imóvel sentada na cadeira parecendo estar em uma espécie de transe, com o olhar perdido. Georges tenta, em vão, que ela o responda. Molha um pano com água, coloca-o na cabeça dela e nada. Sai da cozinha (deixando a torneira aberta) para buscar ajuda quando percebe que o barulho da água parou.
Ao voltar, se depara com Anne falando normalmente e o repreendendo por ter deixado a torneira aberta. Georges explica o que aconteceu, ela não se lembra de nada; ele acha que ela está de brincadeira até perceber que não e que Anne ficou bem surpresa com o ocorrido. Acabam por ver o médico da família que sugere uma cirurgia para desobstruir a artéria carótida, o que não acaba bem. Anne sofre um derrame que a deixa com o lado direito do corpo paralisado. Depois do ocorrido, as coisas só pioram e o relacionamento do casal é colocado à prova.
A partir daí, nem Georges nem o espectador sabem como lidar com a situação. Para o primeiro, a dificuldade em lidar com a esposa de uma maneira completamente diferente; para o segundo, conseguir terminar de assistir ao filme. Anne, por vezes arredia, deixa claro que não precisa do marido (para nós, um típico mecanismo de defesa), que pode fazer tudo sozinha, já que não é aleijada. Frustrada, triste e se sentido incapaz, se retrai e acaba por abrir espaço àquela doença que trás a escuridão e nos deixa no escuro: a depressão.
Georges passa a sofrer em silêncio, sozinho e perdido no próprio mundo cinza e melancólico. Irredutível na postura em seguir o que Anne lhe pede, de não levá-la para o hospital, muito menos para o asilo, veste uma capa do herói salvador que acaba custando-o muito caro. Tal sofrimento é retratado em um pesadelo, no qual, assustado, se vê sem saída diante de um elevador bloqueado. O “invasor” é o estado atual de Anne. O sofrimento de Georges é sufocado e agregado pelo medo, pela tristeza e pela dor, sentimentos estes que acabam sendo vistos como bravura pelo vizinho que admira suas ações e esforços.
“Amor” mostra a dura realidade de como os idosos são tradados e abandonados. Fica claro que está longe de ser uma realidade apenas do Brasil. A filha do casal, Eva, interpretada pela consagrada Isabelle Huppert, mostra-se ausente e alienada, ao falar com a mãe – na cama, sem conseguir falar e no soro – sobre venda de imóveis e taxas de juros, como se não estivesse vendo o que está escancarado em sua frente. A falta de tato e de pró-atividade se transforma em raiva e consegue ficar limitada apenas a manifestá-la insistindo que a mãe deve ser levada para um hospital.
Nossa hipótese é de que a culpa velada é o pilar que sustenta suas atitudes. Em uma conversa com o pai, Eva não dá maiores detalhes sobre a vida dos filhos nem do relacionamento instável com o marido, depois de questionada. Não demonstra muito interesse em saber o que os filhos estão fazendo ou se vai tomar alguma decisão sobre seu casamento. Vai levando a vida, meio que no “piloto automático”… Percebe-se que Eva não é feliz.
Observe que “Amor” não tem uma trilha sonora; o horror psicológico já é suficiente para nos envolver com o som duro e sufocante passado na maior parte dentro de um apartamento que, aparentemente espaçoso, nos deixa claustrofóbicos. Em filmes que temas complexos são abordados, é muito comum o recurso do alívio cômico ou diálogos descontraídos e leves. Ele simplesmente não existe em Amour; não há espaço para qualquer descontração e humor – mesmo que leve. A obra nos apresenta com várias cenas longas, muitas delas sem nenhum tipo de diálogo. Afinal, não há muito o que se dizer, já que a realidade fala por ela mesma.
Amor aborda de leve o tema da eutanásia, e deixa para reflexão o que faríamos no lugar de Georges. Tal tema já foi muito bem abordado outrora em filmes como Mar Adentro (2004) e Menina de Ouro (2005).
Uma cena que resume muito bem a expressão do amor verdadeiro entre duas pessoas que construíram uma vida em comum e que agora enfrentam um fim de caminhada bastante difícil: Georges sentado na cama, Anne sem conseguir falar, só balbuciando umas palavras. Ele a encoraja e a anima a pronunciá-las. Anne, então, levanta sua mão e a coloca sobre a mão de Georges. Ele olha a mão dela sobre a dele e coloca sua outra mão sobre a dela e os dois de olham, em silêncio. Quanta cumplicidade. Nesta cena há mais amor e intimidade do que muitas definições que possamos dar à palavra e das muitas cenas de grandes beijos e abraços que já contemplamos na tela grande… A intimidade não só é feita de momentos ternos e felizes mas também dos momentos difíceis e dolorosos.
A pomba ao final, apanhada e acolhida por Georges, que em primeiro momento escorre literalmente por entre seus dedos, simboliza para nós o momento em que o amor precisa “voar” e continuar mais além da vida, em uma união com Anne e com um sentimento que não pode mais ficar preso e sozinho no apartamento.
O que move Georges a matar Anne não é compaixão mas sim o amor, o Amor que dá título ao filme, em sua maior expressão… por isso, em nossa opinião o final não poderia ter sido de outra maneira. A imagem de Anne lavando os pratos e depois chamando-o para sair do apartamento nos mostra que Georges também partiu e que está junto à Anne, na representação de uma união eterna e a esperança de que o amor romântico permaneça além do nosso alcance e do nosso tempo de vida em Terra.