Inspirado no movimento de ocupação de escolas ocorrido em São Paulo no ano de 2015, “Cabeça de Nêgo” é um manifesto de rebeldia ao racismo, anti-sistema e contra a precariedade da educação pública brasileira. Faz isso aliando um discurso social engajado, altamente politizado com cinema da melhor qualidade, sendo capaz de entreter o público com os dramas de seus personagens assim como o leva a refletir e se identificar na tela.
Dirigido e roteirizado por Déo Cardoso, o filme traz como protagonista Saulo Chuvisco (Lucas Limeira, excelente), um adolescente engajado no grêmio estudantil de um colégio público. Após ser alvo de racismo por um colega de classe e ser punido pelo professor de inglês por reagir, o rapaz se recusa a sair de sala de aula e, por lá, por permanece por mais de um dia. Durante isso, ele utiliza as redes sociais para mostrar a precariedade da escola, iniciando um movimento entre os estudantes do local cobrando a direção do colégio e a secretaria estadual de educação por melhores condições.
“Cabeça de Nêgo” aponta para a necessidade de uma quebra urgente do modelo sistemático da sociedade brasileira, baseado nos pilares de ordem e disciplina irrestrita e inquestionável. Para tanto, Déo Cardoso observa que a ruptura precisa ser acompanhada daquilo que é considerado caos dentro deste sistema, como o enfrentamento a uma autoridade em caso de uma flagrante injustiça ou de uma comunicação direta sem qualquer tipo de intermediação no meio do caminho capaz de provocar algum tipo de ruído. Para completar este rompimento total ao padrão vigente, a força da transformação só poderia partir de jovens negros, alvo preferenciais da opressão deste sistema e, portanto, com a energia e a garra necessária para fazê-lo vir abaixo.
‘SAULO PRESENTE’
Toda esta teia discursiva proposta pelo diretor/roteirista encontra vazão com uma história potente, capaz de aproveitar os 85 minutos de duração para construir uma gama de personagens facilmente identificáveis com o público. Saulo, por exemplo, consegue ser um protagonista de muitas facetas, afinal, nos conquista instantaneamente pela vontade imensa de transformação que o move, assim como comove pelo intenso desejo de se aprofundar nos estudos sobre ativismo negro ou pela a inteligência nas negociações, além da grandeza do perdão demonstrada na reta final. Influência de vários símbolos negros, mostrados em duas das mais belas cenas de “Cabeça de Nêgo”, para a gestação de um ativista de voz própria.
A liderança de Saulo puxa o filme, mas, não está sozinha, sendo acompanhada, especialmente, de mulheres negras. E são elas capazes de combinar a perseverança do combate com um olhar afetuoso e humano sobre toda a situação. “Cabeça de Nêgo” ainda conta com uma direção de arte primorosa ao mostrar a degradação dos ambientes escolares, assemelhando-os ao cenário de uma cadeia, local preferido do sistema para que seja o futuro de muito daqueles jovens, além de uma montagem dinâmica dando ritmo aos diversos pontos da história em tão pouco tempo.
Dos raros filmes nacionais de engajamento político potente com uma narrativa acessível para todos os públicos, sem perder o foco da história em seu discurso, “Cabeça de Nêgo” não pode ser restrito ao circuito de festivais ou aos cinemas de arte localizados em bairros e avenidas nobres da grande cidade. É daquelas obras capazes de gerar uma identificação e um despertar social imediato em jovens iguais do colégio Major Andrade, espalhados aos milhões Brasil afora.
Porém, uma obra tão anti-sistema teria espaço em horário nobre em veículos de comunicação em massa beneficiários deste sistema? Pago para ver.