Desde o início do site do Cine Set, em 2014, um dos principais temas era os problemas dos cinemas de Manaus. Anualmente, eu fazia a lista dos filmes que não eram exibidos nos complexos da cidade. A chegada do Casarão de Ideias que ampliou a quantidade de obras do circuito ‘alternativo’ e a própria mudança no acesso e consumo audiovisual com os streamings e outros meios tornou este formato desnecessário. 

Este ano, entretanto, algumas experiências incômodas nas salas de Manaus ao longo de 2023 me fizeram ter vontade de voltar a este assunto. Coloco para jogo a partir de agora: 

1. Descaso com “Noites Alienígenas” 

Dia 30 de março e o Cine Set publicou: “Acreano ‘Noites Alienígenas’ estreia nos cinemas de Manaus”. Ganhador de cinco Kikitos no Festival de Gramado 2022, a produção de Sérgio de Carvalho chegar ao circuito comercial dentro da programação do Cinépolis do Millenium Shopping dividindo espaço, por exemplo, com “John Wick 4” era relevante e raro para o cinema nortista. 

Alegria de cinéfilo em Manaus, entretanto, dura pouco: para começar, o horário da única sessão – 18h45 – era ingrato para qualquer pessoa que possui emprego, fora que chegar ao Millenium neste horário de pico do trânsito é uma missão praticamente impossível. Não satisfeito, o Cinépolis ainda resolveu não exibir o filme na sexta e sábado, justo dias em que “Noites Alienígenas” poderia ter mais público.  

A cereja do bolo foi o cancelamento da sessão de quinta-feira, dia da estreia, sem qualquer aviso prévio e com os funcionários completamente despreparados para dar qualquer informação sobre o motivo. O filme acreano somente foi ter a primeira sessão no domingo, perdendo a visibilidade do primeiro fim de semana. 

“Noites Alienígenas” somente foi encontrar o devido valor no cinema do Casarão de Ideias, onde teve sessões com boas médias de público. Um retrato de como as grandes redes tratam o cinema brasileiro, especialmente, sem a cota de telas para regular o circuito. 

2. Projeção Ruim no Varilux 

Seguindo no Cinépolis do Millenium, uma tradição do complexo veio com tudo na sessão única de “Anatomia de uma Queda” no Festival Varilux de Cinema Francês. Não há sessão de filme mais fora do circuito comercial que não apresente problemas no espaço. 

A exibição do ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023 trouxe o combo completo. Para começar, o atraso da sessão deixou dezenas de espectadores esperando do lado de fora por cerca de 15 minutos. Depois, mais demora já com as pessoas acomodadas na sala. A exibição prevista para começar 20h teve início lá pelas 20h30.  

Claro que isso não seria suficiente e a projeção inicia sem legendas e problemas na própria disposição do filme na tela. Pior de tudo: o filme transcorre normalmente por quase uns 10 minutos até ser paralisada para ajustes. O retorno acontece não do começo, mas, de onde parou e é isso aí.  

O pacote fica completo com os maus educados de sempre comentando tudo o que acontece no filme e o povo mexendo no celular com o brilho lá no alto. Um suco do que é ir ao cinema em Manaus. 

3. UCI Manauara, uma decepção 

Não que você deva esperar algo de uma grande rede de cinema multinacional dentro de um shopping center, mas, o UCI no Manauara Shopping se superou em 2023. A inauguração em setembro de 2022 no lugar do Playarte foi um alento visto que era retomar 10 salas na cidade em um período que os cinemas ainda lidavam um retorno lento do público após a pandemia.  

Como era de se esperar, o cinema focou nos blockbusters para atrair o público e gerar receita rapidamente. Pelo menos, a oferta de sessões legendadas estava mantida em um índice semelhante ao Playarte, antiga rede que operava no Manauara Shopping, ou seja, a partir das 17h, havia opções para quem procurava o idioma original. Não era o ideal, mas, dava para o gasto. 

Este ano, entretanto, o UCI mostrou a que veio e reduziu drasticamente as exibições de filmes legendados. “As Marvels” foi o ápice deste movimento: o fracasso estrelado pela Brie Larson teve 14 sessões dubladas e apenas uma (!!!) legendada às 18h30, horário superacessível. 

A programação, então, virou um horror com qualquer filme grande de Hollywood dominando metade das salas e uma diversidade de títulos risível. Nem mesmo o especial Oscar se salvou: “TÁR”, drama com a maior atuação da carreira de Cate Blanchett e indicado a seis Oscars, não foi exibido no UCI e nem nas demais salas locais. 

4. Passagem turbulenta de “Rio do Desejo” em Manaus 

Filmado em Itacoatiara, “O Rio do Desejo” teve uma estreia especial em Manaus com a vinda de Daniel de Oliveira, Sophie Charlotte, do diretor Sérgio Machado e do escritor Milton Hatoum. Uma exibição especial e gratuita do filme atraiu centenas de pessoas para o Teatro Amazonas na noite de 7 de março. 

A sessão, entretanto, passou longe de ser tranquila: por conta do desejo de muita gente em ver o elenco de estrelas conhecidas nacionalmente e também da equipe do filme querer assistir à obra, a lista de convidados extrapolou o ideal. Desta forma, poucos daqueles que estavam na fila formada horas antes ao lado do Teatro Amazonas conseguiram entrar. Uma organização muito abaixo da altura de um evento deste porte. 

Quem não conseguiu ver “O Rio do Desejo” no Teatro Amazonas precisou recorrer ao Casarão de Ideias, afinal, os cinemas de shopping fizeram aquele lançamento faz-me rir: duas sessões no período da tarde no Cinépolis Millenium (sempre ele) e uma solitária no UCI Manauara. 

5. Formação de público ainda a passos lentos 

O Cine Casarão Festival foi uma das principais novidades do circuito amazonense de cinema em 2023. O evento começou forte pela parceria com a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Isso permitiu a exibição nos grandes festivais ao redor do planeta muito antes do lançamento nacional de filmes premiados. Tudo de graça. 

Programão ideal para os cinéfilos em Manaus, certo? A questão é saber o tamanho desta cinefilia na cidade. Afinal, somente “Afire”, novo filme do prestigiado diretor alemão Christian Petzold, e “La Chimera”, da italiana Alice Rohrwacher, chegaram perto de lotar a sala do Casarão de Ideias de 37 lugares.  

A formação de uma plateia de cinema em Manaus para além do hype, capaz de prestigiar, inclusive, as obras amazonenses para além de quando o familiar ou amigo está envolvido no filme, se faz mais do que necessária. Claro que existem meios como streamings e torrents onde o público tem acesso aos mais diversos longas do mundo inteiro, mas, a presença em espaços dedicados à produção nacional e ao circuito para além do comercial hollywoodiano assim como em festivais como Cine Casarão Festival e Olhar do Norte, é fundamental para a troca de experiências sobre os filmes e gerar números necessários para fortalecer e manter estes eventos e espaços. 

Claro que não dá aqui para esquecer as dificuldades de acesso e locomoção por Manaus com muitas das ações ocorrendo no Centro da cidade e pouco nas periferias. Aqui, vale lembrar que a Zona Leste só veio a ter uma sala de cinema há seis anos. Infelizmente, a criação de espaços culturais como teatros municipais e salas públicas de cinema nos bairros da capital nem passa pela cabeça da Manauscult, hoje, mais preocupada em trazer David Guetta.