ATENÇÃO: O texto a seguir possui SPOILERS de “Vingadores: Ultimato”.
Histórias de super-heróis de quadrinhos são, por definição, otimistas. Por terem sido orginalmente criadas como fantasias infanto-juvenis, o otimismo faz parte de seu DNA: há um herói, há um vilão, o bem combate o mal e ao desfecho, o bem vence. Isso não quer dizer que não possam existir histórias de super-heróis pessimistas. Existem sim, mas quando se parte muito para o pessimismo aí já vira outra coisa. Desde seu início, as produções do Marvel Studios nunca se mostraram interessadas nessa outra coisa. Seus filmes são histórias de heroísmo verdadeiro, mesmo que seus protagonistas se mostrem falhos, ou que às vezes os roteiristas dessas obras tenham buscado inspiração em fatos do nosso mundo para conferir relevância ocasional às narrativas com pessoas superpoderosas batendo umas nas outras.
“Falcão e o Soldado Invernal”, nova produção do estúdio lançada no Disney +, é entretenimento Marvel puro e simples. Tem ação, humor, construção de mundo, personagens legais e tudo aquilo a que já nos acostumamos ao longo dos anos acompanhando o Universo Cinematográfico Marvel (MCU). É também uma minissérie que se dispõe a tocar em assuntos relevantes e a falar sério – um pouco – em meio a toda a agitação. A parte da diversão, na minissérie, é exemplar como sempre. Já a parte séria, essa derrapa às vezes. É uma série sobre legado, e ao vê-la, fica-se com a impressão de que a própria Marvel se viu em conflito ao administrar o legado cinematográfico de um dos seus maiores ícones, o Capitão América.
RECEITA MARVEL À RISCA
Como nos lembramos do desfecho de Vingadores: Ultimato (2019), Steve Rogers envelheceu, viveu sua vida e aposentou seu escudo, deixando-o com seu amigo Sam Wilson (Anthony Mackie). Seu outro amigo, Bucky Barnes (Sebastian Stan), presenciou esse momento. Foi um final doce e muito bonito para um personagem que muitos duvidavam que funcionaria no nosso mundo moderno e cínico. Pois bem, o Capitão virou mesmo uma das figuras mais queridas do MCU e sua saída deixou um vácuo.
Sam, o Falcão, é um super-herói por seus próprios méritos e passa quase toda a minissérie se perguntando se deveria assumir o escudo e a identidade do Capitão América. Já Bucky busca se redimir pelos seus pecados durante seus anos como o assassino Soldado Invernal. Os dois acabam tendo que se unir quando um grupo, os Apátridas, começa a provocar atos de terrorismo pelo mundo, num cenário após Ultimato e o retorno da humanidade que desapareceu após o estalo do Thanos. No decorrer dos episódios, Sam e Bucky cruzam com algumas figuras conhecidas do MCU, heróis e vilões, e se veem também às voltas com um novo Capitão América, patrocinado pelo governo americano: um cara chamado John Walker (Wyatt Russell), que assumiu o posto diante da hesitação de Sam.
De cara, percebemos que “Falcão e o Soldado Invernal” recupera a pegada intensa de ação e intriga de um dos melhores filmes do MCU, Capitão América: O Soldado Invernal (2014). O primeiro episódio abre com uma sequência de ação espetacular, digna da tela grande mesmo, com o Falcão e um dos vilões que sobraram do longa de 2014. A diretora Kari Skogland se mostra muito hábil na condução dos episódios, aliando o espetáculo Marvel – todo episódio tem, ao menos, uma grande cena de ação – e pequenos momentos de drama, humor e personagens, o que também é marca registrada do estilo Marvel.
SEM MEDO DE SE DESAFIAR
Os roteiristas também são muito felizes ao explorar o estado atual do mundo pós-Ultimato, mostrando a difícil realidade de pessoas retornando do nada, e fazendo paralelo com o problema moderno dos refugiados em busca de abrigo em diversos países do mundo, especialmente na Europa. O mundo pós-“blip”, como ficou conhecido o estalo, é um lugar complexo e onde a própria noção de heroísmo é questionada.
Nada representa isso melhor do que Walker, e Russell neste papel se mostra mais um grande achado da escalação de elenco da Marvel. Com seu queixo que o faz parecer uma versão derretida do bonitão Chris Evans, e ao se divertir com a personalidade instável do seu personagem, Russell faz de Walker a figura mais interessante da minissérie. Skogland, de maneira divertida, cria até alguns paralelos visuais sutis entre este novo Capitão e o primeiro filme do herói, Capitão América: O Primeiro Vingador (2011). Outro que também rouba a cena com frequência é o Barão Zemo de Daniel Brühl, retornando mais ardiloso do que nunca. É dele alguns dos melhores diálogos da minissérie, e o ator se delicia a semear a dúvida entre os heróis de Mackie e Stan. Ele até consegue encontrar momentos para fazer de Zemo uma figura divertida.
É através de Zemo, aliás, que os roteiristas conseguem questionar noções de heroísmo, a própria existência do Capitão América e dos Vingadores, e o dilema de Sam Wilson. E alguns dos pontos que a própria série levanta são muito pertinentes: quando vemos a vilã da trama inicialmente lutando por uma causa justa – como Rogers fez algumas vezes – ou quando vemos o personagem Isaiah (um ótimo Carl Lumbly) questionando Wilson por motivos raciais – “nenhum homem negro que se respeite aceitaria ser Capitão América” – o material se eleva. Essas cenas são inegavelmente fortes. A série não foge das complexidades, e isso é muito bom.
COMODISMO IMPERA NA RETA FINAL
Até que… deixa de ser complexa. Nos episódios finais, a coisa se resolve mais ou menos como de praxe nas produções Marvel, ou seja, com porradaria. A vilã deixa de ser interessante e começa a parecer mais como mais uma vilã. Um personagem que comete atos muito questionáveis recebe uma redenção de presente. E a decisão de Wilson, embora tenha base nos quadrinhos, demonstra o quanto a Marvel ficou numa posição difícil. Claro, é muito forte imaginar um homem negro assumindo o posto de herói símbolo dos Estados Unidos. Mas pode ser dito que um argumento tão forte quanto, talvez até mais, seria de que os EUA não merecem um herói como Sam Wilson representando o país.
Em “Falcão e o Soldado Invernal”, a Marvel entrega o entretenimento de sempre, e com seis episódios, a minissérie não fica cansativa – a produtora sempre foi esperta em aprender com os erros dos outros com seus personagens, então podemos esperar que não deverão aparecer temporadas enroladas de 13 episódios estilo Netflix no Disney +. Mas após questionar mitos e a própria necessidade de um Capitão América, a Marvel escolhe o caminho mais cômodo, o do otimismo. Pelo menos eles são consistentes: sempre escolherão o otimismo. Mas é difícil não ver o final da minissérie como um pequeno tropeço: o peso simbólico de um escudo é capaz de meter medo mesmo, até na maior produtora de cinema da atualidade.