Diego Medeiros e Thaís Sales fizeram um verdadeiro tour pelo Brasil nos últimos meses. Ministrando o curso Direitos Autorais e Legislação Audiovisual, os advogados passaram por Caruaru, Recife, Rio Branco e Manaus. Antes da capital amazonense, porém, eles estiveram no Festival de Gramado para o lançamento de “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho.

O celebrado diretor pernambucano é um dos clientes da Sales & Medeiros, único escritório de advocacia voltado para o audiovisual nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste do Brasil. Esta experiência de quase duas décadas no setor foi compartilhada com cerca de 20 alunos durante o curso em Manaus, uma turma que reuniu de produtores locais iniciantes e experientes passando por jovens advogados e servidores da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Amazonas.

A jornada se estendeu ainda em uma roda de conversa com artistas locais durante a quinta edição do Festival de Cinema da Amazônia – Olhar do Norte 2023. O Cine Set conseguiu um espaço na agenda de Diego e Thaís e conversou com a dupla durante uma hora sobre o novo momento da cultura brasileira com a chegada do Governo Lula, as polêmicas relativas à cota de tela e regulamentação do streaming, além do papel da assessoria jurídica em um filme.

Curso aconteceu em Manaus ao longo de cinco dias no Sebraelab. Foto: Juliana Pesqueira/Faeda

Cine Set – Foram quatro anos muito complicados para a cultura de modo geral sem o ministério e com uma Ancine bastante sabotada. Quanto nós, como país, retrocedemos do ponto de vista jurídico, burocrático?

Thaís Sales – Houve uma paralisação no setor e os motivos estão sendo apurados judicialmente para saber quais são os possíveis agentes públicos responsáveis por este fato. Da mesma forma que foi cumprido o que o ex-presidente disse de nenhum centímetro de terra indígena ser demarcada, houve também declarações de criminalização da cultura e dos artistas que foram feitas.

Por exemplo: o fomento dos editais públicos, executados com previsibilidade anteriormente e cumprindo o orçamento previsto pela matriz própria de financiamento do audiovisual através do Fundo Setorial do Audiovisual e da Condecine, foi paralisado. A pandemia foi a justificativa inicial para isso, principalmente, por conta do audiovisual necessitar quase sempre ir para as ruas e envolver muita gente. As salas exibidoras ficaram fechadas e, consequentemente, sem público.

Ainda assim, os editais não foram lançados e os projetos aprovados anteriormente à Covid-19 e ao próprio então governo foram paralisados. Com os resultados já publicados, as contratações deveriam ter sido feitas naturalmente, seguindo os ritos das instruções normativas da Ancine (Agência Nacional de Cinema), o que acabou não ocorrendo.

Isso resultou em uma tríplice paralisia do audiovisual: primeiro pela política pública do governo, segundo pela pandemia e, por fim, pela inexistência ou morosidade destes projetos aprovados em chamadas públicas. O Ministério Público Federal, inclusive, está investigando as razões internas e externas da Ancine nesta situação. Muitas produtoras do Brasil afora, entre elas, algumas atendidas pela Sales & Medeiros, entraram com mandado de segurança para que a Ancine cumprisse o seu papel institucional de realizar as contratações destes projetos aprovados.

Logo, os efeitos dos retrocessos do último governo foram muitos e continuam sendo sentidos até hoje, afinal, são apenas oito meses da nova gestão e da própria recriação do Ministério da Cultura. Esta retomada exige uma formatação jurídica, um prédio físico para abrigar o novo MinC, contratação de servidores e do corpo técnico. Tudo isso necessita recursos, tempo, formação de equipe e transição em um processo de reconstrução.

Cine Set – Agora, com a chegada do Governo Lula, como observam os primeiros movimentos do MinC e da Ancine? E quais devem ser os focos deste novo trabalho?

Diego Medeiros – A própria recriação do ministério é um passo muito importante. Nos últimos anos, a Ancine ficou ligada ao Ministério do Turismo, que não tinha o histórico de lidar diretamente com o desenvolvimento das políticas públicas culturais e, logo, de entender, as demandas de um setor estratégico como o audiovisual, o qual gera R$ 27 bilhões ao ano no Brasil. O novo MinC marca uma retomada institucional, algo nada fácil após tanta desarticulação e destruição.

Vejo 2023 como um ano de recomposição. Mesmo sem estar na quantidade e velocidade que o setor precisa e espera, já tivemos lançamentos de editais na Ancine, a Lei Paulo Gustavo está saindo, as contratações de projetos aprovados anteriormente estão com uma celeridade maior e começando a ser executados, o que movimenta a economia do audiovisual ao gerar novos postos de trabalho e receita, além do valor agregado à cultura, seja no entretenimento, na memória e tantos outros aspectos. Logo, para mim, 2024 tem tudo para ser um novo ano de retomada do audiovisual.

Curso reuniu jovens e experientes produtores audiovisuais de Manaus. Foto: Juliana Pesqueira/Faeda

Cine Set – Vamos falar de algumas pautas importantes: a primeira delas é a Cota de Tela que lentamente avança no Congresso. Como garantir que ela seja respeitada e o que ela deve trazer de novo?

Diego Medeiros – É fundamental a cota de tela ser prevista em lei. Infelizmente não vai acontecer o exibidor e a indústria cinematográfica por si só darem o espaço merecido à produção brasileira. Recentemente, tivemos o filme da “Barbie” que ocupou quase 100% das salas do país justamente pela falta de uma legislação que garanta a exibição mínima do conteúdo nacional para que estes espaços sejam ocupados.

Por isso, é um pleito do setor para que seja retomada a cota de tela. Isso fará com que a produção brasileira tenha um impacto no mercado, sendo exibido nas salas e chegando até ao público. Não adianta a Ancine, através do Fundo Setorial do Audiovisual, investir milhões, bilhões no produto do país que não será exibida em lugar nenhum.

Vale salientar ainda que foram investidos somente em 2020 mais de R$ 400 milhões de recursos públicos nas salas de exibição. Se o Estado está investindo na ampliação do parque exibidor, é preciso dar cartaz minimamente ao conteúdo brasileiro.  

Thaís Sales – Exatamente, e tudo isso envolve questões legislativas, algo que sempre demanda muito tempo para ser solucionado. Afinal, são muitos interesses envolvidos. No Brasil, por exemplo, boa parte dos parques exibidores vêm do exterior vinculadas aos grandes grupos de distribuidoras internacionais. De modo prático, a maior dificuldade do retorno da cota de tela são estas negociações empresariais e de interesses econômicos milionários.

Agora, em uma ordem lógica puxando justamente deste fato de que o Estado investe em bilhões de reais, através do FSA, a partir de uma política pública, no setor do audiovisual, a cota de tela faz mais do que sentido. Em países ao redor do mundo, a cultura é um bem, um direito previsto nas constituições, bancado pela sociedade por ser um produto que deveria ser acessível – infelizmente, na nossa sociedade desigual, nem sempre é a todo mundo.

Porém, ainda há um gargalo no Brasil chamado distribuição e exibição por conta da concentração econômica dos agentes envolvidos em detrimento, especialmente, aos agentes nacionais. Isso se reflete na curta janela de exibição das nossas produções com muito menos semanas que grande parte dos longas estrangeiros ou até mesmo na falta de espaço total.   

Para que se consiga uma aprovação plena do retorno da cota de tela, será necessária uma pressão grande da sociedade civil a partir das articulações das entidades, associações e, claro, do Ministério da Cultura, além da desconstrução de uma cultura que se criou de que o filme nacional não dá dinheiro, não é feito para a bilheteria e é ruim. As produções brasileiras são reconhecidas nos circuitos de festivais e comercialmente também, a ponto das plataformas de streaming aumentarem o número de obras do país em seus catálogos.

Thaís Sales na roda de conversa durante o Olhar do Norte 2023. Foto: Robert Coelho/Olhar do Norte

Cine Set – E a regulamentação do streaming? Estamos vendo um debate intenso nos EUA, as pessoas nas redes e a própria imprensa muito atentas, mas, aqui no Brasil, a situação parece ainda pouco debatida. Qual é o cenário do país e de que forma a regulamentação pode ajudar a indústria nacional?

Thaís Sales – Existia um debate sobre se as empresas de VOD se encaixavam ou não na expressão técnica de contribuinte da Condecine*, afinal, na época de criação desta legislação, esta tecnologia ainda não estava presente da forma massiva e com grande potencial econômico como temos hoje. Os escritórios e assessorias jurídicas dos serviços de streaming se movimentaram e defenderam suas teses perante o Judiciário brasileiro de que não deveriam aderir ao Condecine. Esta batalha também se estendeu no campo legislativo. Houve uma lei que expressamente inseriu na legislação anterior que as empresas de streaming não se enquadrariam no conceito para a contribuição.

Se o VOD entrar na Condecine, seriam mais contribuições para o FSA, o que, consequentemente, levaria a mais investimentos ao setor do audiovisual. Geraria mais empregos, receitas, enfim, maior movimentação econômica na cadeia produtiva de filmes e séries.

O streaming, claro, teve um importante papel no período da pandemia, chegando, inclusive, a fazer editais de auxílios emergenciais e até mesmo produzindo em um momento de total estagnação de investimento público. São grandes empresas mundiais com poder econômico enorme, logo, não teriam prejuízos às suas atividades caso fossem contribuintes, algo já existente em outros países onde elas atuam.

No fim das contas, é um debate nada simples, pois, já está em pauta há anos

*Condecine é a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, um tributo que incide sobre a remessa ao exterior de importâncias relativas a rendimentos decorrentes da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas, ou por sua aquisição ou importação.

Cine Set – Falando das atividades de vocês na assessoria jurídica, especialmente, dos filmes do Kleber Mendonça Filho, o que vocês notam do desenvolvimento das leis voltadas ao audiovisual no Brasil e no mundo? Quais são os pontos que causam mais atritos?

Diego Medeiros – A assessoria jurídica para o audiovisual é fundamental. Desde o desenvolvimento de uma ideia ao lançamento de um edital até a entrega, diversas questões jurídicas rodeiam um projeto – são leis, instruções normativas, requerimentos, contratos com o ente público e com quem irá trabalhar, etc.

No Brasil, ainda precisa ser criada a cultura dos realizadores entenderem a importância do advogado especializado, capaz de compreender as singularidades da área, na execução da obra. A atividade jurídica que exercemos é para que os projetos possam se estruturar neste sentido e atingir a finalidade de captar o recurso, ser feito e, posteriormente, distribuído.

Nosso escritório só atua na área do audiovisual em produtos para cinema ou televisão/streaming. Eu já trabalho neste setor há 18 anos, o que exige um nível de dedicação e especialização para entender o mundo do cinema. “Bacurau”, por exemplo, foram mais de sete anos desde a ideia, a busca de parceiros para ser viabilizado, a inscrição na Ancine, a aprovação no edital, a formulação dos contratos até se tornar um filme em sua execução. Só este longa do Kleber gerou mais de 700 empregos entre diretos e indiretos.

Os principais desafios que vemos na nossa atividade hoje é a regulação e a estruturação jurídica de toda a complexa operação de uma obra audiovisual. Se você fizer um filme ou série sem este acompanhamento, com certeza, os problemas irão aparecer mais cedo ou mais tarde. Muitas vezes, estas lacunas podem não ser suplementadas por conta do prazo ou da execução do projeto ou cumprimento do objeto ou devido à prestação de contas.

Falando neste aspecto, a prestação de contas na Ancine é extremamente rigorosa, o que, de certa forma, desmistifica a ideia de que não há critério no gasto público e tudo é feito de qualquer maneira. Existe uma normativa rígida neste sentido em que o produtor é punido em caso de qualquer desvio ou erro na execução financeira, podendo devolver o dinheiro, sofrer sanções ou até de acessar futuros recursos públicos.

Roda de Conversa no Olhar do Norte aconteceu no Palácio da Justiça. Foto: Robert Coelho/Olhar do Norte

Cine Set – No painel no Olhar do Norte, vocês listaram cinco pontos importantes que os produtores audiovisuais precisam ficar atentos no campo jurídico. Quais são eles?

Diego Medeiros – O primeiro é a formatação do projeto. Qual o tipo de projeto você irá desenvolver e quais aspectos jurídicos estarão relacionados a ele?

A segunda é relativa aos direitos autorais. Quais direitos vão incidir sobre o que está sendo desenvolvido ou criado por você?

O terceiro é a execução do projeto, afinal, há normativas, regulamento aprovado pela Ancine que disciplina como um projeto deve ser feito, incluindo, desde a maneira de como ele deve ser colocado no sistema da agência para aprovação quanto às outras etapas com prazos, condições, requisitos documentais, ou seja, há um mundo de questões jurídicas. Aqui, o advogado faz também uma análise estratégica de verificar o que é melhor, o mais viável, os menores riscos em um acompanhamento contínuo à medida em que as situações se colocam para a obra ao longo do tempo.

O quarto ponto é o modelo de negócio: que tipo de parcerias e relações serão construídas entre os produtores? Será uma coprodução nacional ou internacional? O foco é cinema, streaming, televisão? O profissional precisa entender o que ele irá desenvolver para conseguir um resultado. Isso faz com que as produtoras tenham um foco e, desta forma, fortalecer sua marca no mercado. Não chega a ser uma regra, mas, à medida em que o tempo passa, as empresas se especializam em determinados nichos.

Por fim, o quinto ponto está relacionado à prestação de contas. Entendemos como um aspecto necessário, problemático e essencial. Muita gente pensa que a prestação é algo a ser equacionado apenas no final do projeto. Isso é um erro grave, pois, ela inicia no começo da proposta. Enquanto formula o orçamento, a pessoa já precisa ter esta etapa na cabeça. Quem trabalha na área precisa fazer esta leitura porque a maioria dos recursos do audiovisual brasileiro ainda é dinheiro público, o que exige um cuidado redobrado, pois, será necessário comprovar a boa aplicação e regulação desta verba. Isso é feito através das normas de prestação de contas realizada pela Ancine.

Thaís Sales – Resumindo: o trabalho da gente começa antes de todo mundo e continua depois de todo mundo já ter feito sua parte. Nos festivais de cinema, nos mercados de negócios e nos cursos que realizamos, sempre fazemos questão de explicar a nossa atuação em um projeto audiovisual, algo ainda desconhecido por muita gente.

Antes da assinatura do contrato de investimento e do crédito em conta para a execução do projeto, a assessoria jurídica trabalha em todos os pedidos de diligências (informações adicionais) feitos pela Ancine. Cada resposta é um mini recurso administrativo, pois, há tanto aspectos de produção como jurídicos nele. Chegamos já a ficar três anos nesta etapa com certos projetos.

Já na hora da produção em si do projeto, a assessoria jurídica fica atenta, principalmente, em dois pontos: os contratos de toda equipe – do transporte e alimentação até o roteirista, ator e atriz principal – e nas questões relativas à prestação de contas.

Vale sempre ressaltar que, por legislação da Ancine, a produtora tem de manter todos os documentos relativos à prestação em sua posse por, no mínimo, cinco anos. Muitas vezes, porém, a agência leva muito mais do que cinco anos para iniciar a análise da prestação. Vez ou outra, somos informados de diligência ou notificação relativa a um filme feito em 2010.

A assessoria jurídica no audiovisual é um trabalho muito técnico, profundo e longo.

Diego Medeiros e Thaís Sales estiveram em Manaus anteriormente nas edições do Matapi. Foto: Robert Coelho/Olhar do Norte 2023.

Cine Set – Por fim, como notam a estruturação do setor do audiovisual do Norte do Brasil, especificamente, do Amazonas? Quais pontos do lado jurídico podemos avançar ainda mais e o que já melhoramos?

Diego Medeiros – Acredito muito no potencial do Norte e do Amazonas na produção audiovisual. Minha vinda para cá é justamente para compartilhar esta experiência do Nordeste no setor. São duas regiões brasileiras com questões culturais e de desenvolvimento da área bastante parecidas. Acho que as coproduções e as parcerias entre produtoras nordestinas e nortistas possam aumentar nos próximos anos.

Pernambuco é um polo cinematográfico consolidado graças a movimentos como a primeira lei do Audiovisual em âmbito estadual e editais específicos para o audiovisual, atualmente, na 19ª edição. Podemos trazer esta experiência para o Norte e contribuir para desenvolver o setor.

Sinto também que, à medida em que o tempo passa, cresce a atenção à assessoria jurídica para o audiovisual aqui na região com uma demanda e interesse maior dos produtores. Essa é uma cultura que está sendo desenvolvida na região e que leva tempo até ser totalmente assimilada. Estamos pela terceira vez em Manaus – as duas primeiras foram no Matapi e, agora, estivemos no Olhar do Norte e com o curso de Direitos Autorais e Legislação Audiovisual. Nossa inserção aqui é somar.

Thaís Sales – Mesmo enfrentando a pandemia e o cenário político adverso, o mercado audiovisual do Amazonas, de fato, se expandiu nos últimos anos. Vejo a prestação de serviços audiovisuais, principalmente, para agentes estrangeiros muito consolidada. O Estado é o terceiro local do país onde há mais solicitações de filmagens voltadas, em grande parte, para o mercado estrangeiro. Já há um know-how e profissionais capacitados para atender estas produções.

Seria interessante para o Amazonas se estes profissionais fossem além de prestadores de serviço, mas, também entrando nestas obras como coprodutores, produtores associados e parceiros. Para isso, é necessário se estruturar empresarial e juridicamente, fazer os devidos enquadramentos dos CNAEs e se enquadrar nos formatos de negócios internacionais.

Pode-se ainda aproveitar esta capacidade gigantesca de interesse sobre o Amazonas para estimular estes profissionais locais a contarem suas próprias histórias. Do ponto de vista de políticas públicas, há potencial para ir além dos editais, pensando em questões tributárias para o setor. Um exemplo seria criar uma Condecine amazonense.

A Constituição autoriza cada Estado a ter seus fundos de cultura. Daí, por que não tributar as empresas estrangeiras que chegam aqui para filmar a região, revertendo esta verba para um fundo estadual do audiovisual? Seria uma renda que não impactaria outras áreas e com potencial gigantesco, sobretudo, neste período de olhares voltados para Amazônia.