Lançado em 2014, o livro “Toda Luz Que Não Podemos Ver”, de Anthony Doerr, virou best seller, ganhou o Pulitzer e apareceu em incontáveis listas de leituras imperdíveis no booktube. Era inevitável que logo chegasse uma versão para o audiovisual dessa história ambientada na Segunda Guerra Mundial. Demorou um pouco, mas, no fim de outubro, finalmente estreou a adaptação para a Netflix. 

Com um elenco capitaneado pela novata Aria Mia Loberdi e os veteranos Mark Ruffalo e Hugh Laurie, a minissérie de quatro capítulos é dirigida e produzida por Shawn Levy (“Free Guy”, Stranger Things, trilogia “Uma Noite no Museu”). O showrunner conversou com o Cine Set em uma coletiva de imprensa virtual no mês passado. Veja os principais trechos da entrevista: 

A escolha de Aria Mia Loberti

Encontrar a Aria foi como encontrar uma agulha no palheiro. Eu sabia que a série seria mais autêntica e, como consequência, mais qualidade se a protagonista, que é cega, fosse interpretada por alguém que entende essa experiência. Nós fizemos uma chamada pública para as audições, e recebemos centenas e centenas de links e vídeos gravados pelo celular. Entre eles, estava o de uma acadêmica, dessa jovem que estava finalizando um doutorado. Ela nunca tinha atuado antes – na verdade, ela nunca tinha feito um teste de atuação antes. Mas, ela é inteligente, forte e luminosa, então acabou ganhando o papel. Ela trouxe o papel de Marie à luz com um nível de autenticidade que eu não poderia nunca ter emulado. Ela também nos ensinou sobre a vivência de navegar o mundo sem visão. Foi uma experiência criativa incrível, e também um processo pessoal muito significativo.  

A importância de escalar uma atriz cega para o papel principal

 

Uma coisa que Aria me ensinou é que a forma como a cegueira é representada [na TV e no cinema] costuma não ser condizente com a realidade. Geralmente é representada de forma infantilizada. Ela interpreta uma personagem que passa anos naquele sótão. Ela disse para mim: “Shawn, se eu vivo sozinha aqui, se não há ninguém que vai mexer nos móveis, então eu não preciso usar as minhas mãos ou uma bengala para andar no meu espaço pessoal”. Todos os dias, tinham detalhes como este sobre o que a experiência realmente é, e isso nos permitiu representar a cegueira de uma forma até nova. Não era uma ideia de representação: era a cegueira se representando. Isso é importante e, quando há a oportunidade, devemos fazê-lo. Isso também mudou a forma como eu dirigi, porque eu costumo usar bastante as mãos quando falo, uso muitas expressões faciais, e eu aprendi logo que isso não era importante, que eu tinha que pensar nas palavras que eu usava, que eu precisava usá-las de formas expressiva e concisa. Foi assim que eu pude ensinar Aria a atuar – ela nunca tinha atuado antes. [Essa experiência] mudou a forma como eu trabalho e me tornou mais sensível a todas as ferramentas que temos para nos comunicarmos.  

De blockbusters de ação e comédia para “Toda Luz Que Não Podemos Ver” (e de volta ao cinema-pipoca em breve, com ‘Deadpool 3’)

Eu tive sucesso fazendo ação, comédia, filmes pipoca, mas meu gosto sempre foi eclético, e eu sempre sonhei que meu trabalho como diretor também fosse assim. Esperei por uma história dramática que me permitisse usar diferentes partes do meu lado criativo. Quando li esse livro, eu amei, mas não consegui os direitos [para a adaptação], então nós esperamos bastante. Quando os direitos estavam disponíveis, eu me joguei, porque eu acreditei que essa seria uma oportunidade de fazer um drama que fosse épico, mas também muito intimista. Eu sinto que muitas obras de época são bonitas, mas formais e um pouco distantes. Eu queria fazer um drama de época bonito, mas também muito emocionante, porque esse é o tipo de história que eu gosto e sei contar.  

A parte mais difícil de adaptar o livro 

Eu diria que a parte mais complicada foi solucionada pelo nosso formato. Quando o livro saiu, queriam fazer um filme, e tentaram por muitos anos fazer essa adaptação, mas era muito difícil colocar 540 páginas em duas horas. Eu falei para o autor: “Eu não quero diminuir a sua história. Eu quero honrá-la. Vamos usar esse formato de série limitada, que pode ser de 3, 4 ou 6 episódios. Vamos fazer justiça à sua linda obra”. Eu sinto que achamos o formato certo. Assim que começamos a produzi-la, a prioridade era torná-la fiel ao período histórico. A direção de fotografia, o design de produção, o figurino… Todos os detalhes precisavam ser fiéis à época, mas eu também precisava focar nas atuações para ser um drama que se conecta com o espectador. 

Eu tive uma ideia de uma sequência inteira que seria apenas com som, e uma tela preta. Quando eu tentei fazer isso, eu percebi que não funcionaria. Eu queria, porém, honrar a forma como Marie e Werner navegam pelo mundo, que é por meio do som. Há certas sequências, principalmente no quarto episódio, quando Von Rumpel (personagem de Lars Eidinger) finalmente usa a granada e tira a audição de Marie. Foram sequências desafiadoras para todo o meu time criativo, principalmente a equipe de Som, que já ganhou vários Emmys por “Stranger Things”.  

Cenas favoritas 

A cena em que Werner precisa se despedir de sua irmã foi muito difícil de fazer e, mesmo quando assisto agora, eu acho muito emocionante. Uma sequência favorita é a do último episódio, quando temos Marie no sótão, von Rumpel na porta e Werner tentando chegar à casa. Ela permitiu fazer um tipo de montagem que tem em meus filmes favoritos, como “O Poderoso Chefão”, “Gallipoli”, “Sem Medo de Viver” – o Peter Weir é um ídolo meu. Foi uma sequência desafiadora, mas muito gratificante.  

A estética da minissérie 

O livro é uma espécie de fábula, tem uma certa mágica na forma como conta de duas almas jovens que lentamente se encontram. Eu tento achar meu estilo dentro do tom da história. Por exemplo, “Free Guy” parece “Free Guy” porque aquela é a natureza daquela história. Aqui, essa história tem uma aura mais delicada, com a música de James Newton Howard, com a fotografia… Há uma abordagem mais lírica. Não parecia uma história que precisava ser contada no estilo Paul Greengrass, mais enérgico e hiper-realista. Essas são circunstâncias reais, mas há uma certa beleza nessa história de juventude e bondade que sobrevivem às trevas.  

Louis Hofmann e como o papel de Werner é fundamental para a história 

Louis Hofmann está cativante na série. Ele é jovem, que nem Aria, e atua desde que era adolescente. Ele tem uma facilidade com sua performance que você vê normalmente em atores que já estão na casa dos 40 anos. Ele entende o quão pouco precisa para se comunicar com a câmera. Eu sinto que a atuação dele é tão amável porque é um personagem que é tirado de sua irmã, tirado de um orfanato e colocado no regime militar nazista, mas está determinado a preservar a bondade, a sua humanidade. Esse é o tema do show, a forma como Werner e Marie preservam sua humanidade perante o mal. É um tema muito importante, mais do que nunca.  

A construção de Etienne, personagem de Hugh Laurie 

Etienne é um personagem fascinante no livro. Ele é um veterano de guerra, um homem forte que foi destruído pela Primeira Guerra Mundial. Ele é traumatizado e vive como uma pessoa com agorafobia, dentro do pequeno mundo daquela casa. É quando ele conhece Marie que ele emerge. Hugh é alguém que a gente quase sempre vê interpretando personagens fortes, sexies, inteligentes. Eu quis pegar esse ator forte e ver fragilidade, dor, trauma. Eu nunca tinha visto esse tipo de atuação do Hugh Laurie antes, e eu me sinto afortunado por ele ter se interessado em atuar desse jeito e em se transformar fisicamente. A barba foi ideia dele. Isso foi Hugh reconhecendo a chance de atuar de uma forma diferente do que já fez antes. Eu sou muito fã dele, e vê-lo criar esse personagem complexo foi um presente todos os dias.