Se “Vermelho Sol” funciona como um filme sobre o clima antes do início de uma ditadura, “Deslembro” faz o mesmo retratando os traumas deixados pela mesma. Situado no período da abertura política do Brasil com a Lei da Anistia em 1979, o longa, escrito e dirigido por Flávia Castro, consegue retratar a angústia de uma família marcada por separações com sensibilidade.
“Deslembro” começa em Paris, onde vive Joana (Jeanne Boudier), filha de dois exilados políticos. Após ter crescido na Europa, a garota não aceita a possibilidade de voltar ao Brasil junto com os pais, a ponto de rasgar o próprio passaporte para atrasar o quanto puder a viagem. Ana (Sara Antunes), sua mãe, é brasileira e mora com Luis (Julián Marras), chileno. O casal é reflexo dos rompimentos causados pelos regimes totalitários visto que ambos perderam seus pares nos respectivos países. Completando a família estão Paco (Arthur Raynaud), filho de Luis com sua ex-esposa, e Leon, irmão de Joana.
Logo de cara, nota-se uma das escolhas do roteiro que Flávia Castro utiliza para mostrar a perda de identidade e distanciamento que Joana tem com seu país natal. Enquanto a mãe prefere conversar em português, a filha fica no francês em todos os momentos em Paris, mesmo que saiba falar perfeitamente português. Esse detalhe a acompanha durante a obra e é usado como elemento dramático nos momentos em que Joana, já no Brasil, retorna ao francês para poder demonstrar sua raiva nos momentos de fúria.
A caracterização da personagem continua em sua roupa. Utilizando sempre o cinza ou preto, ela parece estar sempre em um constante luto por seu pai biológico e pelo lugar em que está agora. Distante do mundo que conhecia e dos amigos com quem falava, Joana sempre busca estar alheia de sua nova realidade no Brasil, seja escutando música em seu Walkman ou ainda lendo livros em francês. Esse distanciamento parece diminuir quando começa a conversar com sua avó paterna (Eliane Giardini) e encontra ali um ombro amigo para falar sobre seus sentimentos e conhecer um pouco sobre o homem que nunca teve realmente um contato.
E são nesses momentos sobre o passado, e como ele retorna para assombrar o presente, que chama a atenção em “Deslembro”. Como o pai de Joana é um “desaparecido político”, isso acaba sendo não somente um empecilho emocional, como também prático. Por não existir uma certidão de óbito, Joana não pode nem sequer participar de uma simples excursão escolar. E aquele fato termina por continuar sempre presente para a garota, mesmo que tente esquecer.
Joana aidna se sente frustrada com a mãe por não conseguir conversar com ela sobre o que aconteceu com o pai. Em uma cena bastante emocionante, a protagonista briga com a mãe na cozinha por ainda achar que o pai não está morto, por não saber o que significa realmente “desaparecido”. Ana fica em silêncio, sem dar nenhuma resposta, evitando qualquer tipo de fala e sai com raiva do ambiente. Nessa ocasião, é impossível dizer qual das duas está errada: Joana explode por não saber o que aconteceu, e sua mãe se esconde em uma casca onde busca apenas evitar relembrar o passado traumático.
PECULIARIDADES BRASILEIRAS EM CARÁTER UNIVERSAL
No quesito de atuação, o elenco é muito bom por conseguir manter estes detalhes na forma de lidar com questões tão espinhosas. Jeanne Boudier encarna Joana de forma a mostrar a ambivalência da personagem: quando não recebe a resposta que quer explode em raiva, mas, ao mesmo tempo, é capaz de oferecer carinho para as pessoas que deixa entrar em sua vida. Já Sara Antunes consegue ser o oposto da filha em uma atuação marcada por sua euforia nesse novo início no Brasil, mas com uma certa melancolia visto o que ocorreu antes.
A estrutura de “Deslembro” é marcada por sua linearidade, interrompida em breves momentos que dão destaque a curtos lapsos de memória de Joana quando criança. É justamente esse caráter de “invasão” e de “quebra” que dão ao filme um apelo estético mais atraente. Com montagem de Flávia Castro e François Gédigier, a dupla realiza um trabalho de colagem em algumas sequências para poder dar fluidez e, mais na frente, quebrar este ritmo.
Além disso, é através da montagem que algumas cenas conseguem ter um impacto emocional maior. Isso é evidenciado na hora em que Joana está em um piquenique na floresta e um jogo de câmera e cortes implicam uma sensação de agonia e claustrofobia, revelando um deslocamento da protagonista naquele novo ambiente. Isso também é visível em uma constante utilização de colagens de calçadas com algum tipo de rachadura, utilizadas como símbolo em alguns momentos para ressaltar a realidade imposta a família de Joana.
A fotografia do filme é outro destaque: Heloísa Passos traz uma visão pautada pelo uso de câmera na mão e planos onde é evidente o vazio dos personagens, pela forma que são jogados para o extremo da tela. É bastante poético o contraste entre o apartamento colorido da família de Joana em Paris e o ambiente inóspito, cinza e vazio da nova residência no Brasil. Um reflexo sobre a reconstrução e o retorno para algo deixado e esquecido há muito tempo.
“Deslembro”, ao fim, funciona como um filme dedicado para aqueles que perderam e, até hoje, lutam para encontrar algum tipo de conforto dado os crimes cometidos durante a ditadura. Os dramas que o filme busca representar, nnão ficam presos somente àquele contexto histórico. O sentimento de perda de um ente querido ou a expulsão de terras por um grupo alheio ao seu são universais e, infelizmente, continuam acontecendo todos os dias no Brasil. E é esse caráter universal de como “Deslembro” trabalha sua narrativa que transforma o filme em mais um destaque deste rico ano de 2019 para a produção nacional.