“Luce” se inicia com um aluno de colégio norte-americano discursando para uma plateia de estudantes e pais, um discurso, na verdade, raso sobre o futuro que aguarda os jovens e coisa e tal. O aluno é o tal Luce do título, um jovem negro. Luce Edgar nasceu na Eritreia, país africano devastado pela guerra, e foi adotado e levado aos Estados Unidos por um casal branco. Ele é um dos alunos-modelo da sua escola, considerado brilhante, é atleta e faz parte da equipe de debate. É admirado por todos. Mas quando Harriet, uma das suas professoras, lê uma redação polêmica que ele escreveu e descobre algo no seu armário, inicia-se uma série de eventos que farão com que traços questionáveis da personalidade do rapaz comecem a ser descobertos.
Baseado numa peça teatral do autor J. C. Lee, temos em Luce um mistério que vai se desvendando aos poucos ao espectador e que prende a atenção. Nas mãos do cineasta nigeriano Juluis Onah – curiosamente, o mesmo diretor do horroroso O Paradoxo Cloverfield (2018) – Luce se torna uma obra inquietante, provocadora e até um pouco cínica, que trabalha várias problemáticas em relação ao grande tema central do racismo norte-americano, e o faz com muita competência.
Em Luce, as atuações e o roteiro são os aspectos mais importantes da experiência cinematográfica. E o elenco reunido por Onah não decepciona: desde Octavia Spencer, como a combativa professora Harriet, passando por Tim Roth e Naomi Watts como os pais adotivos bem intencionados de Luce, até o jovem Kelvin Harrison Jr. no papel-título, todos estão muito bem – Harrison Jr., então, se revela o dono do filme com sua atuação multifacetada e muito interessante. Até atores que aparecem em poucas cenas se mostram eficientes, compondo personagens com nuances.
Já o roteiro não tem medo de explorar questões complexas e expor as hipocrisias por baixo da aparente perfeição da sociedade norte-americana. Em dado momento, alguém até aponta que Luce é “o Obama da escola”, ou seja, o negro símbolo da terra das oportunidades. Harrison Jr. até lembra um pouco uma versão jovem do ex-presidente, o que deixa o paralelo mais agudo. Ao longo do filme, essa aparente perfeição é demolida aos poucos pelos vários conflitos dramáticos da história: entre Luce e sua mãe, entre ele e uma jovem de origem asiática – que adquire tons até sombrios – e entre ele e a professora, que escancara o racismo perverso que age sobre ambos os personagens de maneiras diferentes. Enquanto a professora sofre o racismo na pele, Luce é eleito pelo mesmo sistema racista como prova de que os Estados Unidos “funcionam” e, portanto, reduzido a um símbolo.
SEM TOM PATERNALISTA OU EDIFICANTE
Alguns detalhes do roteiro, porém, impedem Luce de alçar voos mais altos. Ao longo do filme, chega a ser um pouco frustrante ver os pais do personagem-título mudarem de ideia sobre o filho, dependendo da cena. Num momento, a mãe desconfia de Luce; em outro o apoia; depois volta a desconfiar. O pai também. Não fossem as performances seguras de Watts e Roth, os personagens acabariam parecendo esquizofrênicos, ao sabor da conveniência do roteiro. E por mais que esse mesmo roteiro se esforce para integrar a subtrama da irmã da professora, que tem problemas psicológicos, à narrativa principal, essa integração acaba não sendo realmente bem sucedida e poderia ter sido cortada do longa.
Mesmo com esses problemas pontuais, Luce acaba sendo uma obra não tão fácil de encontrar no cinema americano: um drama muito eficiente, com alguns momentos de suspense, que consegue abordar o tema do racismo sem neutralizá-lo, e de forma séria e contundente. Em meio a títulos como Crash: No Limite (2005), Histórias Cruzadas (2011) e Green Book (2018) com os quais topamos na vida, isso é um alento… Luce consegue levar o espectador à reflexão e não oferece respostas fáceis.
Ao contrário dessas produções e várias outras do mesmo naipe, não se percebe em Luce aquele incômodo tom paternalista para com os negros, ou tentativas de tornar a experiência edificante, e nem a história é contada principalmente pelo ponto de vista dos brancos. Luce consegue levar o espectador à reflexão e não oferece respostas fáceis. Pelo contrário, sua força é conseguir explorar seu fascinante personagem-título, sem ter medo de controvérsia ou da complexidade inerente ao tema ou aos personagens, que parecem humanos, acima de tudo.