Tem algumas dores capazes de destruir qualquer relação. De forma semelhante, há aquelas que unem os cacos e são capazes de libertar. Mais do que um drama queer de época, “The World To Come” fala sobre essas lesões emocionais, pautado, especialmente, na solidão e como cada pessoa lida com esses sentimentos. Por conta disso, o maior destaque da trama está em seus personagens.

Dirigido por Mona Fastvold, a narrativa é construída como folhas do diário de Abigail (Katherine Waterston), esposa de um fazendeiro resignada com o que possui. A personagem tem dificuldades em demonstrar sentimentos e expor o que pensa, devido a isso, fecha-se em seu turbilhão de pensamentos que conhecemos devido à narração em voice-over da mesma.

Casada com Dyer (Casey Afleck), percebe-se uma falta latente de comunicação entre eles. E, quando digo isso, não é apenas a falta de diálogos, mas, principalmente, uma distância física e emocional palpável. Poderia dizer que, parte dessa sensação, se deva à morte prematura da filha do casal, no entanto, o roteiro de Ron Hansen e Jim Shepard – autor do livro homônimo que inspirou a trama – estabelece desde o limiar da trama esse estranhamento de Abigail.

Apesar deste distanciamento, é curioso observar que há um carinho no ar, sufocado pela perda da filha e o conformismo da espera pelo que virá. Os dois agarram-se a essa mesma dor para criar espaços de solidão e tentar seguir a vida. Enquanto ele busca retomar a ligação com a esposa – ainda que com as limitações de comunicação -, ela redescobre o ânimo com a chegada da nova vizinha: Tallie (Vanessa Kirby).

DORES E FUGAS EMOCIONAIS

A eterna princesa Margaret é uma força da natureza. Ainda que presa às correntes de um marido ciumento e fundamentalista (Christopher Abbot no melhor estilo Kit Harington), ela é uma mulher de espírito livre, forte e decidida. A interpretação de Kirby somado a seu cabelo rebelde e cor de fogo roubam a cena em todos os momentos em que aparecem; ela é um contraponto a todos os outros personagens conformados e deprimidos. A dor de estar presa a alguém diferente de si é usada como combustão para suas ações.

Fastvold usa a atração que ela e Abigail nutrem para compor um romance singelo, construído como uma poesia. A protagonista a ama como uma adolescente descobrindo o amor e vivendo os altos e baixos de um romance proibido. Ela se permite imergir no momento, ainda que se agarre à espera do que estar por vir; a escrita no diário é importante para que seus sentimentos sejam compreendidos e o espectador se encontre no tempo narrativo.

Devido a isso, a montagem de David Jancsó (“Pieces of Woman” e “Deus Branco”) é posta como capitular, levando a reflexões sobre as situações experimentadas e a modulação de seus sentimentos. O ritmo lento e reflexivo nos ajuda a compreender os personagens, suas dores e fugas emocionais.

“The World to Come” se une a leva de romances queer de época como “Ammonite” e “Retrato de uma Jovem em Chamas”. O trio de atores principais se destaca em cena e dissemina toda a angústia e miséria emocional que os assola. Ressaltando visualmente uma frase icônica de Adele: “Às vezes o amor dura, mas, às vezes, fere”. Nesse caso, ele carrega dor.

Crítica | ‘Planeta dos Macacos – O Reinado’: filme mantém marca pessimista da série

De certa forma, a franquia Planeta dos Macacos é perfeita para os nossos tempos: vivemos em um mundo com guerras, desastres climáticos e pandemias. Diante disso, imaginar que a raça humana seja extinta ou que perca o domínio sobre a Terra não parece assim tão distante...

Crítica | ‘Vermelho Monet’ – entre o fazer artístico e o desejo

Há uma plasticidade visual que conduz todo o trabalho de Halder Gomes (“Cine Holliúdy”) em “Vermelho Monet”. O filme protagonizado por Chico Diaz, Maria Fernanda Cândido e Samantha Müller nos conduz pelo submundo do mercado de artes plásticas apresentando um visual...

Crítica | ‘Transe’: o velho espetáculo da juventude progressista classe A

Pode ser tentador para o público, diante da repercussão memética negativa que o trailer de “Transe” recebeu, ir ao cinema com o intuito de chutar cachorro morto. Os que compram seus ingressos planejando tiradas mordazes para o final da sessão irão se decepcionar. Não...

Crítica | ‘Imaculada’: Sydney Sweeny sobra em terror indeciso

Na história do cinema, terror e religião sempre caminharam de mãos dadas por mais que isso pareça contraditório. O fato de termos a batalha do bem e do mal interligada pelo maior medo humano - a morte - permitiu que a religião com seus dogmas e valores fosse...

Crítica | ‘Abigail’: montanha-russa vampírica divertida e esquecível

Desde que chamaram a atenção com o divertido Casamento Sangrento em 2019, a dupla de diretores Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett vem sedimentando uma carreira cinematográfica que mescla o terror sangrento do slasher movie com a sátira social cômica para...

Crítica | ‘O Dublê’ – cinema de piscadela funciona desta vez

David Leitch: sintoma do irritante filão contemporâneo do cinema de piscadela, espertinho, de piadinhas meta e afins. A novidade no seu caso são as doses nada homeopáticas de humor adolescente masculino. Dê uma olhada em sua filmografia e você entenderá do que falo:...

‘Rivais’: a partida debochada e sensual de Luca Guadagnino

Luca Guadagnino dá o recado nos primeiros segundos de “Rivais”: cada gota de suor, cada cicatriz, cada olhar e cada feixe de luz carregam bem mais do que aparentam. O que parece uma partida qualquer entre um dos melhores tenistas do mundo e outro que não consegue...

‘A Paixão Segundo G.H’: respeito excessivo a Clarice empalidece filme

Mesmo com a carreira consolidada na televisão – dirigiu séries e novelas - admiro a coragem de Luiz Fernando Carvalho em querer se desafiar como diretor de cinema ao adaptar obras literárias que são consideradas intransponíveis ou impossíveis de serem realizadas para...

‘La Chimera’: a Itália como lugar de impossibilidade e contradição

Alice Rohrwacher tem um cinema muito pontual. A diretora, oriunda do interior da Toscana, costuma nos transportar para esta Itália que parece carregar consigo: bucólica, rural, encantadora e mágica. Fez isso em “As Maravilhas”, “Feliz como Lázaro” e até mesmo nos...

‘Late Night With the Devil’: preso nas engrenagens do found footage

A mais recente adição ao filão do found footage é este "Late Night With the Devil". Claramente inspirado pelo clássico britânico do gênero, "Ghostwatch", o filme dos irmãos Cameron e Colin Cairnes, dupla australiana trabalhando no horror independente desde a última...