“O Marinheiro das Montanhas”, novo filme de Karim Aïnouz, é uma mistura de diário de viagem e tributo familiar que leva o espectador para o coração da Argélia – e do diretor também. O documentário, exibido na seção Horizontes do Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary deste ano depois de sua estreia em Cannes, é um projeto terno e tem ótimos momentos, ainda que sua profunda subjetividade possa afastar certos públicos.

O longa acompanha Aïnouz viajando pela primeira vez para a terra natal de seu pai – uma jornada há muito postergada e a qual ele gostaria de ter feito com a mãe Iracema antes dela falecer. É a ela que o diretor dedica as imagens que grava, narrando-as na estrutura de uma longa carta para ela. Através de sua câmera, tenta entender a sua relação com essa terra estrangeira que tanto moldou sua vida – e mostrá-la para uma pessoa tão afetada pela Argélia quanto ele. 

DILEMA ENTRE DOIS CAMINHOS

Em termos de escopo, “O Marinheiro das Montanhas” encontra o diretor no seu modo mais intimista e modesto. O longa não tem a visão ampla de “Aeroporto Central“, a narrativa épica de “A Vida Invisível” ou o simbolismo de “Praia do Futuro”, por exemplo. Apesar disso, o roteiro escrito por Aïnouz e Murilo Hauser ousa ao querer, mesmo nesse formato restrito, tocar nas feridas do colonialismo e na vida da Argélia de hoje.

De fato, os melhores momentos do filme vem de fragmentos de conversas com pessoas comuns nos quais essas questões são expostas, como quando o realizador conta de um jovem argelino que preferia que os colonizadores franceses jamais tivessem saído do país. Em outra cena, quando ele explica a uma família que seu filme está sendo feito para o cinema, eles perguntam tristonhos se ele não passará na TV para que eles possam assisti-lo, em uma potente nota sobre o acesso à experiência cinematográfica.

Com esses subtextos cheios de potencial, a insistência em trazer a narrativa de volta para um contexto familiar é frustrante. O viés extremamente pessoal da narrativa faz “O Marinheiro das Montanhas” andar numa corda bamba. Quando funciona, abre-se uma porta que permite entrever a dor da perda de um ente querido e o sentimento de alienação de crescer longe da terra natal dos pais. Quando não, cria-se uma barreira que faz o público se perguntar o porquê de estar acompanhando histórias tão íntimas que só dizem respeito à família do cineasta. 

NOVOS OLHOS PARA O PRESENTE

Independente disso, o filme acerta ao seguir seu diretor enquanto ele se perde em tangentes, mistura passado e presente, e cria segmentos inteiros baseados em sua imaginação – o melhor deles sendo a ficção científica que Ainouz imagina gravar com uma menina que lhe faz lembrar de sua mãe. Essa abordagem também se reflete na montagem de Ricardo Saraiva, na qual fotos antigas, registros históricos e gravações atuais se misturam em um fluxo de pensamento visual.

Na liberdade de sua mente, Aïnouz fantasia (e questiona) o romance de seus pais, imagina uma outra vida em outro país e busca rever o passado para ver o presente com novos olhos. “O Marinheiro das Montanhas” transforma essas questões comuns em imagens, e enquanto a viagem do realizador pode não ser perfeita, as vistas do caminho valem a pena. 

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