Mais de uma década depois de Árido Movie (2006), o cineasta Lírio Ferreira retorna com Acqua Movie. Este novo trabalho não se trata realmente de uma sequência, embora traga de volta um ou outro personagem do longa anterior. Mas é, com certeza, uma companion piece, uma obra que se irmana, se complementa ao longa de 15 anos atrás, como se o diretor voltasse ao seu sertão para retomar alguns temas e questionamentos, e também trazer alguns novos à discussão. E acima de tudo, para mostrar como o Brasil evoluiu nesse tempo e como não evoluiu. Uma demonstração de como alguns locais do país, certas pessoas e conflitos parecem que não mudarão nunca.
Acqua Movie começa com a morte de Jonas (o protagonista de Árido Movie, vivido novamente por Guilherme Weber numa breve participação). A morte da figura paterna da família acaba levando a uma reaproximação entre o filho Cícero (Antonio Haddad), um garoto, e a mãe, Duda (Alessandra Negrini). Duda é uma documentarista engajada que passou muito tempo trabalhando na Amazônia filmando tribos indígenas, por isso, não teve uma grande convivência com o filho e seu casamento com Jonas já estava nos últimos suspiros. Mesmo assim, Duda e Cícero acabam embarcando numa viagem para levar as cinzas de Jonas de volta à sua cidade natal. Ou melhor, à nova cidade, pois a antiga foi para debaixo d’água depois da transposição do rio São Francisco. E, em meio a uma nova paisagem, a um Nordeste que parece diferente, os dois acabam entrando em conflito com as velhas estruturas de poder da região, leia-se, a família de Jonas, que comanda a cidade.
É um filme de premissa simples, com seus protagonistas já tendo arcos dramáticos bem delineados desde o início – é um road movie, filme de estrada, para reaproximar mãe e filho, afinal. Mas dentro dessa estrutura, o roteiro encontra espaço para abordar o embate dos dois Brasis: o moderno e desenvolvido (pelo menos, nas aparências); o arcaico e brutal. Ao longo da jornada de Duda e Cícero, eles topam com protestos por demarcação de terras indígenas, políticos bandidos, o velho coronelismo e frases criativas nas traseiras de caminhões.
UM FILME NECESSÁRIO
Nesse sentido, apesar de ter sido filmado em 2019, é até apropriado que Acqua Movie seja lançado nesta época do governo Bolsonaro, com a polarização política no Brasil ainda mais exacerbada e na qual o sofrimento dos povos indígenas só aumentou – é mais um filme brasileiro recente que teve seu lançamento adiado por causa da pandemia. Só por abordar as contradições do Brasil de frente, Acqua Movie já se configura como obra política que fala bastante ao momento em que estamos. Não deixa de ser um filme, afinal, que explora contradições até de modo visual: numa cena, os personagens estão no deserto seco, poucos minutos depois se veem rodeados pela água.
A esse respeito, “Acqua Movie” é um filme muito bonito visualmente também: a fotografia de Gustavo Hadba explora com grande força imagética a paisagem do Nordeste brasileiro. Um cânion que aparece num momento tira o fôlego do espectador; em outro vemos trechos da cidade submersa pelo ponto de vista de um dos personagens. As cores são vivas, especialmente o azul da água; e o calor do sertão praticamente perpassa da tela.
E o comentário político fica quase sempre abaixo da história de reconciliação entre mãe e filho. Negrini e Haddad estão muito bem: ela apostando na força de sua personagem e ele na inocência – e o abrir de olhos do menino é o cerne da narrativa, embora ocasionalmente o roteiro desperte no espectador um pouquinho de raiva do Cícero por se opor demais à mãe e até colocá-los em perigo em nome de um clímax dramático. Completando o elenco, Augusto Madeira e Marcélia Cartaxo vivem com gosto a família de “coronéis”, e até vemos o cineasta Claudio Assis, amigo do diretor e outra força do cinema pernambucano, numa ponta.
Embora a estrutura dramática convencional torne o longa um pouco previsível e alguns dos tópicos abordados na narrativa não sejam de fato tão aprofundados, Acqua Movie, sem dúvida, acaba sendo um filme importante no cenário brasileiro atual. Uma obra que conta uma história pessoal em meio ao cenário de contradições do Brasil, contradições estas que só se acirraram e ficaram mais brutais desde que o filme começou a ser pensado e realizado. Quinze anos, no fim das contas, não parecem ser um período de tempo tão grande assim no Brasil.