A música de Beethoven sobe, a câmera fica lenta, o protagonista volta a narrar sua história de forma analítica. Aos poucos, a imagem some na tela, e vemos apenas a escuridão por alguns segundos. Abruptamente, retornamos ao filme.
Essa sequência se repete algumas vezes em “O Homem que não Estava Lá”, filme de 2001 dirigido por Joel Coen e roteirizado pelo próprio diretor e por seu irmão, Ethan Coen.
A narrativa do filme não se estrutura em partes separadas. A sequência descrita inicialmente apenas ocorre em momentos de transição entre os acontecimentos que nos são mostrados a partir da visão do personagem principal, Ed Crane (Billy Bob Thornton). É ele o narrador nada empolgado que nos acompanha do início ao fim da obra.
Ed é um barbeiro que vive em Santa Rosa, cidade no interior da Califórnia, cuja principal característica é o silêncio. sua capacidade de se manter calado é destacada algumas vezes ao longo de “O Homem que não Estava Lá”, e de certa forma, é essa feição que possibilita os acontecimentos em sua vida; como seu próprio emprego, ao lado do cunhado e chefe que nunca para de falar; seu casamento, ao lado da esposa com quem ele mal se relaciona (e ela se sente agradecida por isso); o relato do chefe da esposa, que o escolhe para contar um segredo mais pela taciturnidade do barbeiro do que por buscar algum conselho realmente.
PROTAGONISTA ANGUSTIANTE
É nesse ritmo de apenas absorver o mundo a sua volta que Ed sobrevive, e mesmo suas ações deliberadas sempre voltam a colocá-lo nesse espiral de melancolia, onde ele ouve uma música que gosta, nos conta um pouco de sua história e adormece, até ser levantado de novo. A fotografia assinada por Roger Deakins, em mais um brilhante trabalho, reforça essa sensação quase onírica ao longo da obra. Utilizando-se do preto e branco e das sombras para remeter à estética noir que inspira o filme, por vezes nos deparamos com imagens deslumbrantes de um lugar tão pacato como é uma pequena cidade nos Estados Unidos. Interessante perceber como essa beleza afeta de modo negativo o protagonista, onde a bela paisagem parece o engolir em seu marasmo. Para Ed, o encanto das imagens o remete mais a um pesadelo do que a um sonho.
Dessa forma, a atuação de Billy Bob Thornton merece destaque. Um personagem com personalidade tão passiva poderia facilmente desinteressar o espectador, mas isso nunca ocorre. Mantemos sempre a esperança de que Ed “acordará” e passará a se comportar de forma mais ativa. Cada olhar pro vazio, sobrancelha erguida, ou tragada de cigarro por parte do ator em tela nos reconecta com aquele mundo. Não sentimos tédio e não sentimos pena. É como se cada pequena ação do personagem fosse uma chance para que ele tomasse as rédeas da situação, um sopro de esperança na relação criada entre protagonista e público. Embora nunca se concretize.
‘QUANTO MAIS SE OLHA MENOS SE SABE’
Nesse sentido, os acontecimentos trágicos que marcam “O Homem que não Estava Lá” funcionam mais como um divisor de parágrafos do que realmente motor para a narrativa, embasada na direção de Joel Coen, que sempre preserva as próximas ações, enquanto nos deixa algumas pistas. Toma-nos pela mão para simplesmente nos guiar a novas dúvidas. Os close-ups em certos objetos nos transportam para um momento de reflexão de Ed e também representam pontos de virada na trama. O diretor usa essa técnica para planos poéticos ao mesmo passo que faz a narrativa andar, constituindo uma elegância característica da carreira dos irmãos Coen.
A fala do personagem Freddy Riedenschneider (Tony Shalhoub), um brilhante (e excêntrico) advogado é contratado para ajudar Ed e sua esposa em certo momento do filme, simboliza o sentimento passado pela obra, “Olhar para alguma coisa altera-a. (…) Às vezes quanto mais se olha menos se sabe”.