“Small Axe” chegou no Globo Play sem fazer muito barulho. Coleção de cinco longas-metragens, a série em formato de antologia dirigida por Steve McQueen (“12 Anos de Escravidão”) é considerada uma das melhores produções lançadas nesse período pandêmico. Ao longo dos seus episódios, a obra discute a luta racial na Inglaterra entre os anos 60 e 80.
Para o primeiro capítulo, intitulado “Os Nove do Mangrove” somos levados para Notting Hill em 1968. O charmoso bairro londrino abriga imigrantes afro descendentes que tem o restaurante Mangrove como lugar de encontro e acolhimento. Entre os seus frequentadores há pessoas de diferentes ânimos e pesos dentro da comunidade negra como Altheia Jones (Letitia Wright), líder de um braço dos Panteras Negras, e um casal de ativistas que vive em conflito pela forma como devem se posicionar diante das manifestações raciais. Basicamente, acompanhamos o episódio sob a perspectiva dos três personagens citados mais o policial racista Pulley (Sam Spruell) e o dono do Mangroove, Frank Crichlow (Shaun Parkes).
Ambientados no Mangrove
Os primeiros cinco minutos são fundamentais para compreendermos a sociedade em que a trama se constrói. A gramatura na coloração da fotografia de Shabier Kirchner nos imerge em um tempo longínquo, crianças brincam em terrenos baldios enquanto os muros que as cercam gritam palavras de discriminação racial e apoio a Enoch Powell – ministro conservador e opositor às políticas de imigração. Neste cenário, o Mangrove surge como um refúgio. Enquanto do lado de fora as cores que predominam são frias e passam a percepção de um ambiente inóspito, dentro do restaurante, há uma sensação de calor, abrigo e, por que não dizer, latinidade.
O ambiente se torna a segunda casa para os negros expatriados. Curiosamente, dois elementos são cruciais nesse processo. O primeiro é a pimenta picante, que Crichlow tem orgulho de enfatizar como referência da casa; e o segundo, a imagem de Paul Bogle, herói da resistência jamaicana. Olhando-os de forma ligeira, há algo que remete a pizzaria de Sal em “Faça a Coisa Certa” de Spike Lee. Ambos são pontos de encontro da comunidade negra e motor de discussão e resistência da narrativa, no entanto, os desdobramentos levam a resultados distintos e isso se deve, principalmente, a maturidade dos agentes do Mangrove liderados por Shaun Parkes.
Há uma forte carga emocional envolvendo o personagem e, mesmo quando ele está à beira de explodir, há melancolia e singeleza em suas ações. A cena que melhor explana isso é a da cela na qual o personagem é captado em um contra-plongée rodeado pela iluminação da janela atrás dele. Um dos momentos de maior impacto e profundidade do episódio. Crichlow tem uma forte presença e relevância na comunidade por ter a figura libertária agregada a suas características, sem realmente ser de fato e de direito um militante. Como Jones fala em determinado momento, ele é um líder nato e não imagina a importância que tem para os que estão ao seu redor. Essas mesmas qualidades se estendem ao seu estabelecimento, sem que ele se der conta.
O sistema judiciário
Compreender a ambientação e os personagens é necessário para a fluidez do segundo momento da narrativa de “Small Axe: Os Nove de Mangrove”, quando o restaurante cede lugar ao tribunal. A partir de então, o racismo do sistema judiciário e a truculência policial tomam o espaço gerando revolta e reflexão. Os motivos iminentes disto continuam sendo causa de anseio e preocupação na comunidade negra como o tratamento dado aos jovens, que mesmo anos depois continuam sendo invisíveis perante a sociedade, e o posicionamento preconceituoso do sistema.
Nesse ínterim, o roteiro de McQueen e Alastair Siddons (“Tomb Raider: A Origem”) desperta feridas por conta do silenciamento dos réus, o medo das mães de terem suas crianças levadas ao sistema de adoção, entre outras coisas. Mas não causa tanta comoção quando as cenas de Yahya Abdul-Mateen II em “Os Sete de Chicago”.
Desta forma, a tônica do primeiro episódio de “Small Axe” pode ser resumida numa frase de Howe (Malachi Kirby): “o governo nunca vai assumir a responsabilidade com a comunidade negra, a não ser que vamos para rua”. E para encarar esse momento é necessário ter um ponto como cais e refúgio, tudo que o Mangrove representa em Notting Hill. Todos esses encaminhamentos comprovam que a série é essencial para os nossos dias.
Estou ansiosa pelo que vem por aí.