Sabe quando alguém te pergunta: ‘defina este filme em uma única palavra’? Para “Um Animal Amarelo”, tenho certeza que, antes da resposta, viria uma constante hesitação, de longas pausas para se pensar e escolher a melhor palavra, a qual, talvez, dentro de poucos instantes, não será a mais exata ou mais próxima da experiência do novo filme de Felipe Bragança  (“Não Devore Meu Coração”), selecionado para a mostra competitiva de longas-metragens brasileiros do Festival de Gramado 2020.  

Afinal, Bragança propõe uma experiência abrangente (até demais) sobre os fantasmas da formação identitária brasileira, prevalecendo uma ambivalência de sentimentos e temores. “Um Animal Amarelo” usa da metalinguagem, simbolismos, nonsense para criar desconforto no público, tanto na forma quanto no conteúdo, nesta fábula dividida em cinco partes, ambientada ao longo de mais de um século para não exatamente concluir nada, mas, sim, apresentar um estado de espírito constante de fracasso e frustração que acompanha cada brasileiro por toda uma vida, gerado a partir da base de um país marcado pela escravidão.  

O personagem central interpretado por Higor Campagnaro chama-se Fernando (ou pode ser Felipe Bragança também), um cineasta brasileiro, como faz questão de salientar sempre que possível a narradora da história. Fracassado, sem um tostão no bolso para poder rodar um filme fora do padrão convencional (aliás, a sequência da tentativa de financiamento junto ao banco é um dos pontos altos do longa), sem nenhum relacionamento mais fixo e desencantado com os rumos do país, ele decide ir para Moçambique, onde encontra um trio de produtores de diamantes liderado por Catarina (Isabél Zuaa, simplesmente espetacular) que pretende negociar as pedras em Portugal. Toda esta trajetória é assombrada por um animal amarelo, um fantasma herdado do avô (Herson Capri), um sujeito com delírios de grandeza e riqueza. 

Definida pelo próprio Bragança como uma ‘fábula transatlântica”, “Um Animal Amarelo” explora o ridículo de um país distante de se conectar com suas mais profundas raízes, sedento pelo poder e dinheiro, entregue e abatido, mas, sempre com uma imagem cínica para exalar uma falsa confiança. Quase como um ‘Lebowski’ dos trópicos sem ao cool dos Coen, Fernando é esta representação de Brasil, o que, ao mesmo tempo, se encaixa dentro da ironia autodepreciativa do filme em que o objeto da análise se mistura com quem a investiga, mas, acaba por ser, mais uma vez, a visão de alguém ainda em posição de privilégio, visto que, por mais que passe por tudo aquilo visto ao longo de duas horas, no fim das contas, ele, no máximo, será assombrado, enquanto os marginalizados pela sociedade (mulheres, negros, indígenas, LGBT+) seguem diariamente suas trajetórias fantasmagóricas  de submissão.  

Ainda assim, “Um Animal Amarelo” é instigante – talvez, esteja aqui a resposta para a indagação da pergunta inicial do texto – suficiente para criar uma grande viagem ao abranger tantos mundos que parecem distantes como Brasil, Portugal e Moçambique, mas, que estão umbilicalmente interligados, carregando raízes trágicas impagáveis e sentidas pelas antigas, atuais e futuras gerações. São as chagas de um passado que se tenta invibilizar ou minimizar a todos os custos, mas, que, de maneira alguma, irão sumir, como mostra de maneira tão poética a sequência final. 

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