Um conto-da-carochinha com desdobramentos épicos é a força-motriz de “Um Herói”, novo drama de Asghar Farhadi. O longa foi exibido no Festival de Londres deste ano após estreia em Cannes, onde levou o Grand Prix – o segundo prêmio mais prestigiado do evento. Escolhido pelo Irã para representá-lo na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Internacional do ano que vem, o filme encontra Farhadi em sua melhor forma, explorando o que as pessoas fazem diante de duros impasses morais.

Nele, Rahim (Amir Jadidi) é um sujeito que resolve usar uma licença de dois dias da cadeia para tentar convencer o seu credor Bahram (Mohsen Tanabandeh) a perdoar a dívida que o levou ao cárcere. Com a ajuda da namorada Farkondeh (Sahar Goldust), ele devolve uma bolsa perdida cheia de ouro à sua dona e o faz de uma maneira que os diretores da sua prisão fiquem sabendo. Do nada, ele é pintado como herói na mídia e a opinião pública passa a pressionar Bahram a ceder – mas nada é o que parece e não tarda para que o plano saia completamente do controle.

AMBIGUIDADE É O PONTO CHAVE

Farhadi, que também assina o roteiro, é um astuto estudioso da moralidade do Irã contemporâneo, como visto em longas como “A Separação”, que o catapultou ao sucesso internacional, e O Apartamento“. Apaixonado pelas dualidades da vida cotidiana, ele investiga aqui o insuperável abismo entre histórias públicas e suas contrapartes privadas em uma sociedade ultramidiática e entrega seu filme mais pungente desde “O Passado”, de 2013.

Seus personagens têm uma habilidade rara na dramaturgia de não serem mocinhos ou vilões. O que torna seus filmes instigantes é a mesma coisa que, por vezes, os torna desafiadores: o espectador é forçado a confrontar situações complexas onde todos os envolvidos têm um pouco da razão – e onde, por conseguinte, um dos mesmos será inevitavelmente injustiçado.

Longe da segurança proporcionada por um lado “certo” para o qual torcer, o público é envolvido em um drama cheio de pressão e ambiguidade que não dá trégua.

CUMPLICIDADE EM UMA TRAGÉDIA

A questão principal de “Um Herói” está na aparente impossibilidade de reconciliação entre Rahim e Bahram – e como ela se encaixa dentro da noção social de justiça. Rahim se vê como um cara que se meteu em uma dívida por falta de sorte, mas ele também é alguém que não vê problemas em apelar para soluções pouco louváveis quando seu plano começa a dar errado.

Para seu credor, que o vê como um aproveitador ingrato que abusou da sua ajuda, essas soluções são mero reflexo do seu caráter. Na medida em que Bahram é vilanizado na mídia, o espectador é convidado a refletir sobre as partes da vida que não encontram espaço nas narrativas de massa.

Com as consequências dos seus atos lhe cercando por todos os lados, Rahim é eventualmente confrontado pela necessidade de manter sua honra – uma constante Farhadiana – em um terceiro ato memorável. Ao rolar dos créditos, “Um Herói” se prova um corajoso filme sobre uma tragédia que se desdobra sob os olhos vorazes de uma audiência onipresente – e que torna sua plateia sua cúmplice.

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