A vida de um refugiado é o foco de “Flee”, filme exibido no Festival de Londres deste ano depois de premiadas passagens nos festivais de Sundance (onde estreou) e Annecy. A produção norueguesa é uma tocante história de sobrevivência que transforma um passado traumático em uma animação que reafirma o poder de resiliência e o desejo de pertencimento do ser humano.
Nela, o acadêmico Amin relembra sua infância no Afeganistão da década de 1980 e como o crescimento das forças dos Mujahideens – grupos de guerrilheiros precursores do Talibã que combatiam o governo do país – impôs um exílio e uma diáspora à sua família. Hoje baseado na Dinamarca e nunca tendo contado a verdade sobre sua vida pregressa – nem mesmo a Kasper, seu atual parceiro – ele topa sentar-se com o diretor Jonas Poher Rasmussen para uma série de entrevistas que remontam sua trajetória.
CORES DA MEMÓRIA
A escolha pelo formato animado, longe de ser casual, está embutida no desenvolvimento do projeto, que conta uma história real velada pelo anonimato. Na ânsia de contá-la protegendo seu personagem, Rasmussen opta por pseudônimos e de certa forma “esconde” os envolvidos através da animação. A liberdade que estas decisões artísticas dão a Amin o leva a exumar sentimentos e situações há muito dadas como perdidas e a plateia o acompanha nesse processo.
A fotografia de Mauricio Gonzalez-Aranda e a montagem de Janus Billeskov Jansen apostam em ângulos e cortes que imitam a linguagem de documentários intimistas contemporâneos, com movimentos que remetem à câmera na mão, de forma a familiarizar o espectador.
No entanto, é no estilo de animação que “Flee” ganha asas: em uma interpretação super estilizada do processo de memória, as lembranças vagas aparecem como rabiscos cinzas sem claros contornos, enquanto as vívidas – bem como as imagens dos dias atuais – vêm definidas e cheias de cores. Pontuando a produção, imagens de arquivo dão um contexto sociopolítico que transplanta algo que poderia ser uma fantasia para o difícil mundo transitório pós-Guerra Fria.
BUSCA POR UM LAR
Para complicar sua situação, Amin é homossexual e precisa navegar uma jornada de autoaceitação ao mesmo tempo em que esconde de seus familiares quem ele realmente é. Ainda que “Flee” aborde esse conflito consistentemente durante seus 90 minutos de projeção, ele não constrói sua narrativa em torno dele, focando mais nas agruras de uma fuga da terra natal e da negação de uma família.
Esses traumas aparecem anos depois, por exemplo, na relutância de Amin em contar a verdade a Kasper e decidir morar junto com ele. A maneira natural como “Flee” trabalha as longas consequências do asilo é um acerto, personificando uma das diversas histórias que aparecem como números em artigos de jornal e discursos políticos. No final das contas, a busca por uma ideia de casa – seja ela qualquer lugar ou pessoa – é algo profundamente relacionável, independente de nacionalidade.