O encontro entre uma entidade híbrida amazônica com uma jornalista influenciada pelo Cinema Novo rendeu um dos mais importantes filmes brasileiros de 2023. “Uýra – A Retomada da Floresta” chegou aos cinemas do país no último dia 1º de junho para se tornar mais uma obra a trazer a Amazônia como uma das temáticas centrais, juntando-se ao acreano “Noites Alienígenas” e ao amazonense “A Terra Negra dos Kawá”. 

O documentário de pouco mais de 1h retrata a artista trans indígena, que viaja em uma jornada de autodescoberta, usando a arte performática para ensinar jovens indígenas e ribeirinhos que eles são os guardiões das mensagens ancestrais da floresta amazônica. “Uýra – A Retomada da Floresta” recebeu dezenas de prêmios em festivais de cinema no exterior como Melhor Documentário pelo Júri Popular no Frameline International LGBTQ+ Film Festival em São Francisco, na Califórnia; Melhor Longa-Metragem Indígena no Bend Film Festival; e Prêmio do Júri na London Film Week. 

Na direção, Juliana Curi, uma jovem cineasta em seu primeiro longa-metragem. Ela iniciou a carreira no departamento de criação da MTV Brasil, desenvolvendo campanhas sobre meio ambiente e política. Desde então, foi premiada pela ONU Mulheres, assinou as exposições Pink Intervention (Galeria Spotte Art NY, Artsy), A Batalha do Corpo (Centro Cultural São Paulo) e fundou o projeto de inclusão audiovisual EUETU Lab. 

Neste incrível bate-papo exclusivo para o Cine Set, Juliana conta sobre todos os cuidados para realizar o documentário da forma mais respeitosa possível e das trocas com Uýra Sodoma na construção narrativa do filme. Confira: 

Cine Set – A região amazônica e o seu povo estão cercados de muitos mitos, simulacros e enganos que se prolonga ao longo dos tempos. Uýra Sodoma/Emerson é uma artista/intelectual contemporânea que usa dos seus conhecimentos e corpo para a ruptura desse pensamento colonizador. Diante disso, como foi o seu primeiro contato com ela e como foi esse processo de conhecimento, diálogo e as ideias concretizadas no filme? 

Juliana Curi – Conheci Uýra via Instagram, em 2019, em um momento da vida que sentia ser capaz de contar uma história em longo formato. De cara, notei que ela é uma das pessoas mais interseccionais com quem já tive contato e sinto que o público pode perceber esta característica dela também.  

A Uýra é indígena com sua ancestralidade apagada por conta do processo colonizatório violento no Brasil, logo, está em busca da sua identidade. Vive na periferia de Manaus, mas, também transita na floresta. É uma bióloga da academia ao mesmo tempo em que é uma entidade que carrega todos os espíritos da floresta. E é LGBTQIA+. 

Ela traz todas estas lutas em torno de uma mesma causa: a preservação da vida. É uma pessoa que carrega pontes e diálogos. Para mim, foi fascinante conhecê-la a partir do meu campo de luta e estudo. Fiz o primeiro contato através das redes sociais, realizamos reuniões e rapidamente lancei a proposta de fazer o documentário. A Uýra adorou a ideia, topou o desafio e conseguiu um mês da agenda cheia para imergir conosco na floresta e realizar o filme. 

A Martina Sonksen, co-roteirista do filme, a produtora Lívia Cheibub e todo mundo que se somava ao projeto encontrava algo no trabalho da Uýra que as movia nesta luta pela preservação da vida. Acredito que a potência da obra dela é a conexão de todas estas batalhas e da interseccionalidade. 

Cine Set – Interesse você citar sobre este contato via redes sociais: falamos tanto da toxicidade das pessoas ao se comunicarem nelas, mas, há este lado positivo também de facilitar o contato entre as pessoas… 

Juliana Curi – Com certeza. A Uýra, inclusive, ensina bastante sobre estratégia coletiva de luta e como as redes sociais podem ser uma bela ferramenta para isso. A primeira estrutura narrativa do roteiro surgiu da própria página dela no IG, pois, já usava aquele espaço como um diário de trabalho e local de comunicação. Desta forma, ajudou a rastrear toda a timeline da atuação dela nas artes visuais e lutas sociais.  

Um ponto importante de salientar, aliás, é que a Uýra não é só a protagonista do filme: ela assina a escritura original e também é coprodutora. Todos que trabalharam no documentário tinham uma visão similar de que o audiovisual costuma separar sujeito e objeto, cineasta e personagem. O nosso objetivo era mudar isso com a Uýra estando no centro da subjetividade desta obra, sendo a partir dela que tudo nasce. 

Quanto a minha experiência com as redes sociais, tenho o EUETU Lab, projeto que criei em 2020, bem no meio da edição do documentário. Trata-se de uma mentoria audiovisual desenvolvida para jovens de regiões de vulnerabilidade socioeconômica. 

A primeira turma durou dois anos e contou com seis jovens de São Paulo; hoje, eles estão ocupando cargos importantes no setor tradicionalmente dominado por homens brancos e com forte cunho patriarcal. Acredito que estes novos profissionais serão futuras sementes para um audiovisual mais humano e diverso. 

E o Instagram foi fundamental para tecer a rede e ampliar o alcance do EUETU Lab até chegar aos jovens. Apesar de muitas críticas, tenho experiências maravilhosas com as redes.   

Cine Set – Percebi que não há identificação dos personagens que aparecem no filme. Foi proposital para sair do padrão de um documentário ou proposital no sentido de instigar a quem assiste a procurar por estes personagens? 

Juliana Curi – Sim, foi proposital. Este filme é um híbrido entre documentário e ficção, emprestando linguagem destes dois universos. Ao construir esta história, a Uýra falava da encantaria da Amazônia: entre diversos autores, ela citava muito o João de Jesus Paes Loureiro, o qual afirma que a encantaria da região nasce do fundo do rio.  

Durante a imersão com a Uýra ao vê-la em atividade ou performando e até na ajuda para que acessássemos o povo Kambeba, era possível sentir os espíritos da floresta. No documentário, temos a Dona Babá, liderança Kambeba, que fala sobre a mãe da mata e como isso é parte da vida dele. 

Quando chegamos na ilha de edição após toda a experiência de imersão e conscientes de que o trabalho da Uýra está muito além do pensamento racional, mas, sim no campo metafísico, ficou claro de que não era possível montar a construção narrativa de forma linear, cartesiana, eurocêntrica em que somente a razão é o guia.  

O desejo era honrar duas raízes: de um lado, há uma denúncia até pelo Brasil ser um dos líderes mundiais em mortes de ambientalistas, indígenas e pessoas trans, enquanto o outro era este foco na encantaria exaltada pela Uýra. Desta forma, turvamos esta linha entre documentário e ficção para que o público pudesse entender racionalmente, mas, também sentir, imergir neste universo. O silêncio, as escolhas musicais, as coreografias, as cores transportam para este mundo sensorial. 

Cine Set – Como foi a sua experiência na Amazônia? Quem é a Juliana Curi de antes e a Juliana Curi depois dessa imersão nesse território verde e na arte de Uýra e dos outros atores sociais que auxiliaram de alguma forma no processo das filmagens?  

Juliana Curi – A minha história traz semelhanças com a Uýra dentro deste território chamado Brasil. Venho de uma ancestralidade indígena, minha bisavó e avó tiveram os passados completamente apagados por conta da colonização, mas, ao mesmo tempo, tive a oportunidade de crescer ao lado de uma avó cabocla que me transmitiu uma cosmovisão de respeito à natureza, à terra e às pessoas.   

Desde muito nova, tive um faro muito aguçado em relação a este epistemicídio que ocorre no Brasil, ou seja, este assassinato de saberes populares e tradicionais. Isso me fez ter uma vontade clara de lutar pela preservação destes saberes. Decidi cursar jornalismo, onde adquiro o conhecimento das lutas sociais e, a partir dela, começo o meu trabalho no cinema com este foco e na preservação do meio ambiente.   

Foi muito delicado querer fazer e aceitar realizar este filme, afinal, sou uma mulher do Sul. A leitura social sobre mim é de uma mulher branca com todos os privilégios que isso traz e também pela histórica visão da Amazônia sendo novamente vista de fora. Logo, busquei ser a mais responsável possível no documentário, levando as ferramentas que adquiri ao longo dos anos a serviço desta história e das lutas sociais daquele povo.  

Foi assim que cheguei à Amazônia. Acredito que saí dela mais fortalecida e de que o meu trabalho deve estar a serviço de outras Uýras, outros biomas brasileiros, dos povos indígenas.  

Cine Set – O que significa ancestralidade para você e qual a importância do filme para além do território amazônico? Como as inquietações de preservação da natureza, de identidade e memória atravessam a pessoa Juliana Curi e a diretora?  

Juliana Curi – Eu cresci com esta sensação latente de saber quais as raízes daquela mulher que me criou, sentindo que existe uma cosmovisão apresentada por ela de muito respeito à terra, mas, completamente impossibilitada de onde isso veio. A ancestralidade, na minha visão, está nisso.  

Enquanto buscava esta raiz, eu também fui me encontrando com todos os saberes populares e tradicionais, os quais se tornaram parte da minha construção de identidade. Tenho profundo respeito pelas religiões de matriz africana, inclusive, estava lendo “Iansã”, da Cristina Theodoro, em que ela fala sobre o candomblé ser uma forma de ver o mundo que beneficia a negros e brancos na construção de um mundo menos violento.  

Quanto “A Retomada da Floresta”, vejo o coração do filme em uma frase dita pelo Uýra: “a Amazônia tem que ser vista de dentro e não de uma visão de satélite. Ela precisa ser vista aqui, com os pés na Terra, olhando para os lados”. O principal motivo dela era fazer um filme sobre o seu território e para o seu território, porém, após o documentário passar por 35 festivais ao redor do planeta e 15 prêmios, eu noto que a obra transcende.   

Certa vez, uma pessoa nos Balcãs disse que lembrou da ética passada pela avó. Já pessoas da comunidade LGBTQIA+ de São Francisco, nos EUA, falaram que entenderam a mensagem de que preservar a floresta também era dever delas. São cruzamentos que a mensagem da Uýra permite ampliados pelo audiovisual.  

Cine Set – Igual as redes sociais, o audiovisual traz estas complexidades, ora corroborando estas imagens dos negros e indígenas, mas, também ajuda a contrapor estes mesmos olhares. Através do seu olhar e da própria Uýra, é perceptível mesmo como o documentário traz esta necessidade da defesa da preservação da natureza e de olharmos para si próprio. Afinal, querendo ou não, somos atravessados por estes pensamentos de fora e acabam chegando como verdade. Isso nos leva a não nos identificarmos como negros e indígenas…  

Juliana Curi – Sim, o audiovisual faz uma grande manutenção de estereótipos. A cada três meses, eu sempre retorno ao texto da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie em que ela fala do perigo da história única. Uma frase dela que sempre me chama a atenção é a seguinte: “comece a história com a flecha dos indígenas e não com a chegada das caravelas para você ter uma história completamente diferente”.  

Logo, o audiovisual precisa mudar este ponto de vista. Isso acaba sendo também um recado para o cinema brasileiro, formado em sua maioria de pessoas brancas com muitos privilégios. Precisamos que elas desloquem seu olhar e sejam capazes de construir pontos de vistas multidimensionais. Existem hoje muitas técnicas para se colocar o trabalho a serviço de outras visões – direção e roteiro, por exemplo, são cargos de construção de subjetividades que se continuarem nas mesmas mãos torna difícil um antídoto a esta história única.   

Cine Set – O filme foi produzido por diversas mãos, uma equipe diversificada e representativa. Essa era uma preocupação inicial ou foi uma ideia a ser amadurecida ao longo do processo?  

Juliana Curi – Trago isso na minha prática de direção há muitos anos por sempre partir da ideia de uma constelação e não de uma única estrela. Acredito que uma história é contada de forma muito mais rica quando há múltiplas visões a construindo. A chance de chegar a uma história poderosa é muito maior.  

Essa metodologia é amplificada quando me deparo com a história da Uýra pela interseccionalidade dela. Trazer pontos de vistas complementares só enriqueceria a possibilidade de traduzir este trabalho para o audiovisual.  

Cine Set – Antes do filme ganhar o mundo nos festivais e, agora, os cinemas tradicionais, ele foi exibido em um evento da FAS (Fundação Amazônia Sustentável) com lideranças jovens amazônidas e, logo depois, em uma apresentação especial produzida por ISIS e a Pedra de Fogo Produções, para a comunidade de Nossa Senhora de Fátima 1, zona leste da cidade, região descentralizada, onde Uýra se criou. Como foi essa interação e a resposta de um público tão diversificado? 

Juliana Curi O coração da distribuição do filme é a distribuição de impacto. O documentário nasce dos caminhos tecidos pelos quais a Uýra foi nos guiando em termos de produção. Foi além de levar o longa para a Amazônia; ele nasceu aí, logo, o público central dele também está nesta região.  

Por isso, antes de rodar em festivais ao redor do planeta, fizemos exibições em locais-chaves da Amazônia. Além dos dois eventos citados, houve também um junto à Escola de Ativismo, no Pará, e uma ação educacional muito forte com as mulheres Tikuna e Kokama que fazem o projeto Climas.  

O evento de Nossa Senhora de Fátima foi a nossa estreia nacional. Por ter sido um projeto que surgiu lá, a sessão acabou sendo muita linda e extremamente simbólica. Na época, a Uýra fez um post importante ao dizer que a exibição não era levar a cultura para a periferia, mas, sim marcar que é uma cultura que nasce da periferia. Não queremos ser o branco salvador que chega com o cinema em tal lugar; “Uýra – A Retomada da Floresta” é daquela região, nasceu ali.