Não há como não lembrar dos movimentos de rua daquele Brasil de junho de 2013 ao assistir “Nardjes A.”. Afinal, as imagens de ruas tomadas de manifestantes jovens com gritos de indignação e a sensação de esperança de que estavam lutando pelo futuro melhor de seu país dominam o documentário dirigido por Karim Ainouz (“Praia do Futuro” e “A Vida Invisível”) sobre as gigantescas manifestações contra o governo da Argélia em 2019. Porém, a abordagem do cineasta cearense com descendência argelina se deixa levar pela empolgação excessiva com o impacto do momento sem necessariamente dimensionar e fazer uma reflexão mais profunda sobre tudo aquilo.
“Nardjes A.” se passa em 8 de março de 2019, Dia Internacional das Mulheres e data da terceira manifestação organizado pelo movimento popular Hirak (‘movimento’, em tradução literal) contra o governo de Abdelaziz Bouteflika, acusado de sucessivos atos de corrupção e manter uma estrutura de poder incapaz de provocar mudanças reais na Argélia após a independência do país da França, ocorrida em 1962. Ao longo deste dia, Ainouz acompanha a jovem que dá nome ao filme, uma ativista com pouco de mais de 20 anos que participa intensamente dos protestos, enquanto, ao mesmo tempo, faz registros de outras pessoas e situações daquele dia histórico.
O documentário, de fato, nos dá uma dimensão da energia das manifestações ao ir dos prédios abarrotados de pessoas nas varandas e das ruas tomadas em uníssono com seus gritos e cantos contra o regime do país até pequenas e singelas observações como a reza no meio da rua e protestos específicos de pessoas idosas cientes da necessidade de uma revolução, independente se viverão para conseguirem ver as transformações que tanto pedem. A sequência do túnel e a saída dele são de arrepiar. Tal imersão orgânica de Karim no movimento se deve muito graças à escolha do dispositivo para gravar o filme, no caso, um smartphone, tecnologia utilizada pelos próprios manifestantes para registar aquele momento histórico.
Ainda chama a atenção a forma como o Hirak atrai uma quantidade expressiva de jovens seja nos cânticos de protestos semelhantes aos da torcida de futebol ou às belas músicas nos mais diversos ritmos e com letras de fácil identificação com aquela geração esperançosa pela possibilidade de mudar os rumos de seu país. Desta forma, acaba sendo natural que Nardjes seja a protagonista para nos conduzir, afinal, ela sintetiza tanto essa resistente juventude argelina como os efeitos danosos do regime do país – o pai dela, por exemplo, integrante do Partido Comunista, só pode conhecê-la aos 3 anos por ter sido exilado da Argélia.
PALANQUE DO HIRAK
Porém, a forma como “Nardjes A.” trabalha sua protagonista fica aquém dos momentos em que o documentário não está com ela. Apesar de situar o contexto de luta daquela geração a partir de relatos da própria vida e dos seus temores feitas em narração em off, a ativista surge mais como uma espécie de garota-propaganda do Hirak do que necessariamente uma imersão mais profunda na mente daquela geração de jovens.
A participação dela nos protestos, por exemplo, não tem o mesmo impacto do que outros depoimentos marcantes vistos no decorrer do filme, sendo justamente estes trechos, longe dela, que fazem o documentário ganhar vida e a real dimensão dos acontecimentos. Para piorar, Karim ainda força a mão na reta final com a sequência no restaurante e na boate para mostrá-la como uma garota que só deseja ser feliz e livre ao lado de seus amigos, como se aquilo não tivesse mais do que escancarado ao longo de todo projeto.
Lançado no Festival de Berlim 2020 e selecionado para o Festival Olhar de Cinema, “Nardjes A” se deixa tomar pela pulsação das ruas, algo natural para a proporção dos empolgantes movimentos de ruas vistos na Argélia. Porém, para um diretor experiente como Karim Ainouz, espera-se um pouco mais do que apenas servir de palanque a qualquer movimento popular por mais justo que seja.