Há algum tempo me propus à reflexão sobre a representatividade da adolescente gorda no cinema. Entre os variados rostos que preencheram os estereótipos apresentados estava o de Beanie Feldstein, intérprete da insípida Julie Steffans em “Lady Bird”. E, é com prazer que a vejo dividir o protagonismo com Kaitlyn Dever em “Fora de Série”, estreia de Olivia Wilde como diretora.
“Fora de Série” se encaixa no subgênero coming-age e tem um texto sagaz e muito identificável, embora sejam obras diferentes, essa identificação acaba por rememorar “Oitava Série”, longa de Bo Burnham. Entretanto, a característica mais forte da produção de Wilde é a subversão dos padrões já estabelecidos nesse “clássico” tipo de filme, tornando-o uma referência contemporânea do gênero.
A comédia traz a história das melhores amigas Molly (Feldstein) e Amy (Dever), que, prestes a se formarem no Ensino Médio, descobrem que tudo aquilo que abriram mão durante esse período, para entrarem em boas faculdades, não foi suficiente para as tornarem especiais. Pelo contrário: todos aqueles que se divertiram e aproveitaram o momento também passaram em faculdades renomadas. A partir daí, elas têm uma noite – literalmente – para recuperarem o tempo perdido.
Quebra de Padrões
De um lado está Molly: gorda, feminista convicta e presidente da turma. É chata e um tanto egoísta. Do outro lado, Amy, lésbica assumida, careta e covarde. Esses contrapontos tornam as personagens palpáveis e representativas. Elas teriam tudo para seguirem o tradicional arquétipo de adolescentes excluídas, mas é aqui que as engrenagens de “Fora de Série” começam a assumir rumos distintos. As protagonistas são marginalizadas por vontade própria, diferentemente dos coming-age dos anos 2000, em que o personagem sente orgulho em ser esquisito. Afinal, Molly e Amy se sentem superiores aos outros, por isso, o auto-afastamento parece ser a melhor saída para elas.
Nesse contexto, o caminho escolhido pelas roteiristas (sim, o filme é escrito por quatro mulheres!) é mostrar que a sociedade high school estava preparada para acomodar as meninas, sem a necessidade de modificá-las por completo, mas aceitar suas individualidades e complexidades. As segmentações e pressões sociais ainda existem, mas elas se tornam insignificantes, pois o padrão perde seu valor. Isso traz outro ganho, porque há espaço para que os personagens secundários também apresentem tridimensionalidade e ganhem o público, mesmo com pouco tempo de tela.
Molly & Amy: as crônicas da sororidade
Há uma verdadeira preocupação em transmitir com veracidade a experiência da adolescência – aqui mais um paralelo com o filme de Burnham. Isto é visto por meio da naturalidade com que os temas e as interpretações do elenco são projetados. Há coragem e fidelidade na maneira como todos no filme falam de sexo, na representatividade LGBTQ distante de clichês, na empolgação de novas experiências e a forma de lidar com julgamentos e boatos entre os colegas de escola. Tanto o time de roteiristas quanto a diretora conseguem traduzir as especificidades desta geração. Se o “Clube dos Cinco” mostrou a adolescência dos anos 80 e “Meninas Malvadas” dos anos 2000, “Fora de Série” tem tudo para ser o coming-age da década.
Um dos principais elementos que apontam o filme como o representante coming-age da década é a sororidade. Tornou-se comum que projetos para esse público sejam calcados em competições femininas por interesses amorosos, melhores notas ou popularidade. Embora essa nunca tenha sido uma das características verídicas da amizade feminina. A relação entre as mulheres criadas por Wilde não é assim. Mesmo as personagens secundárias estão dispostas a somarem com as outras.
Triple A (Molly Gordon), Gigi (Billie Lourd), Ryan (Victoria Ruesga) são apenas alguns exemplos de garotas que, em outras produções adolescentes, encaixar-se-iam em estereótipos competitivos, mas aqui não. A sororidade e a parceria feminina são mais um retrato do comportamento feminino contemporâneo. Perceba, parceria feminina, não amizade. Mas Molly e Amy conseguem transpor o ponto máximo da parceira. A lealdade é tão presente entre elas que falas como “quem te permitiu ser tão linda? quem permitiu que você me deixasse sem fôlego” são constantes e emocionantes. Elas prezam para que o melhor da outra aflore e esse retrato raro de amizade é complementado pela química de Feldstein e Dever. Elas transmitem sintonia e verdade em suas performances.
O amadurecimento proposto em “Fora de Série” está relacionado a se permitir e quebrar seus próprios pequenos padrões. A obra apresenta o processo de ressignificação de aparências e valores, algo que se tornou uma das bandeiras da juventude contemporânea. Aproximando ainda mais o filme da ideia de ser a comédia adolescente da década.
Wilde ousa em trazer em seu debut quebra de padrões e uma ode à sororidade e é isso o que torna “Fora de Série” tão legítima e admirável. Claro, que não se pode esquecer o quanto a presença de mulheres no set para contar narrativas femininas é imprescindível. Afinal o que seria de Molly e Amy sem o quarteto roteirista, a diretora e três produtoras?
Chega bater a vontade de ligar para a melhor amiga.