Ken Loach costuma retratar o quanto o sistema capitalista afeta negativamente as pessoas que dependem dele. Em “Eu, Daniel Blake”, ele destacou o quanto a burocracia e o sistema podem abalar a tranqüilidade de quem precisa deles. Já em “Você não estava aqui”, seu olhar se volta ao seio familiar e a nova divisão de trabalho.
O roteiro assinado por Paul Laverty, que também escreveu “Eu, Daniel Blake”, mostra a exaustiva e complicada rotina da família Turner, em que o pai trabalha 14 horas como entregador autônomo, a mãe é cuidadora de idosos e os filhos adolescentes tentam sobreviver diante da selva em seu lar promovida pelo livre mercado. O trabalho feito pela dupla Laverty e Loach evidencia os efeitos da atual economia sobre a dinâmica social, utilizando o núcleo familiar como o objeto de estudo.
A escrita de Paul Laverty
Laverty é eficaz ao não apresentar vilões humanos, mesmo que o chefe brutamontes interpretado por Ross Brewster se autoproclame o rei da babaquice. Ainda assim, há um incômodo frequente que urge diante do sistema. Uma aflição que surge mediante a percepção da precarização do trabalho, que é tão preocupante a ponto de tornar o ritmo da jornada de trabalho intolerável. E o pior de tudo é notar que isso é apenas um reflexo do caos da vida moderna, que escraviza enquanto promete libertar.
O roteiro demonstra essa sensação por meio dos diálogos expositivos e que se tornam aterrorizantes quando se percebe os conceitos da chamada positividade tóxica, no caso, do falso empreendedorismo emancipador, que aprisiona enquanto prega a libertação. Evidenciando algo que para alguns é óbvio: no sistema das reformas trabalhistas contemporâneas, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco.
O ponto mais comovente, no entanto, de todo drama proletariado da família Turner é a percepção dos filhos que não podem esperar algo melhor economicamente para si que a situação de seus pais. Nesse sistema, sonhar em fazer um curso universitário é contrair uma dívida para toda a vida sem a certeza de ter um futuro profissional. Dessa forma, a revolta de Seb (Rhys Stone) mostra-se bem mais do que um simples arrombo da adolescência, mas principalmente um posicionamento de rebelião frente ao sistema. Afinal, jovens do mundo todo fazem a mesma pergunta que ele: “existem bons empregos? Que bons empregos?”
Carisma e identificação dos Turner
Outro costume de Ken Loach é trabalhar com atores em começo de carreira, o que lhe oportuniza empregar improviso e realismo com as situações vivenciadas em cena com maior veracidade. Isso explica, por exemplo, o desconforto de Rhys Stone e a naturalidade de Kris Hitchen, que tem total domínio de tela.
Soma-se a esse fator a concepção dos personagens em seus filmes, nos quais a humanidade em seus altos e baixos é o que há de mais precioso em cena. As angustias e discussões que permeiam o clã Turner devido ao ritmo de vida acelerado despertam emoção, intensidade e identificação do público. Os momentos de maior conectividade do filme, por exemplo, são aqueles que surgem de pequenos gestos de afeto como o olhar cuidadoso de Abbie (Debbie Honeywood) para Ricky (Kris Hitchen) ou do lanche entre o pai e a filha.
Loach traz para esse projeto sensibilidade e afetuosidade em um momento em que é necessário repensar nosso estilo de vida e o ritmo incessante de trabalho. Precisamos nos preparar para que em nossa trajetória, quando os créditos subirem, a sensação que predomine não seja a de que, independente de nossas ações, seguiremos conscientes de que viveremos o resto da vida enfrentando os mesmos obstáculos. Como é a impressão deixada pela família Turner.