Durante a minha infância, tínhamos o costume de nos reunir aos finais de semana para assistir filmes de animação. Foi assim que vi (e decorei as músicas) dos clássicos da Disney. Com o tempo, os gêneros foram mudando, mas as lembranças desses momentos permaneceram. Assistir o live action de “Cruella” marcou um retorno a essa memória e de forma bastante positiva. Afinal, estamos diante de uma vilã emblemática em uma construção temática e visual muito atrativa.
A direção de Craig Gillespie (“Eu, Tonya”) mergulha o espectador no universo punk e outsider da Inglaterra na década de 70. Somos apresentados a Estella (Emma Stone), uma jovem órfã que vive de pequenos golpes com seus amigos e sonha em atuar no mundo da moda. A produção foca em mostrar como ela se tornou a famigerada vilã em busca de um casaco de pele de dálmatas. Nesse processo, Gillespie orquestra com dinamismo os recursos técnicos.
Cruella veste Beaven
O maior destaque fica por conta dos figurinos de Jenny Beaven, que possui dois Oscars pelo seu trabalho em “Uma Janela Para o Amor” e “Mad Max: Estrada da Fúria”. Não me surpreenderia se Cruella lhe rendesse mais uma indicação.
Assim como os detalhes no figurino de Sansa Stark em “Game of Thrones” indicavam seu movimento político, conhecemos as figuras mais importantes de “Cruella” por meio do simbolismo de suas vestimentas. As cores, os tecidos e os desenhos nos fazem distinguir o estado de espírito de Estella e, de forma ambivalente, a aproximam e distanciam da Baronesa (Emma Thompson).
É possível compreender os caminhos que elas querem seguir enquanto indivíduos e profissionais, curiosamente, também servem para discutir o estado social de conflito entre gerações – especialmente no recorte temporal do filme – e indicar o quanto o que está obsoleto pode voltar a moda. Basta observar o comportamento de Cruella e interligá-lo a como sua história foi contada no audiovisual.
Repetições e Superficialidade
Embora os elementos técnicos como fotografia, maquiagem e cabelo, design de produção e trilha sonora corroborem no dinamismo da narrativa, o roteiro e a montagem de Tatiana Riegel – parceira regular de Gillespie – são os itens que enfraquecem a produção. Na verdade, a montagem sofre pela repetição na condução da trama. “Cruella” é extenso (são 2h14 de duração) e há pouco espaço para o desenvolvimento de personagens secundários que passam a sensação de terem algo a ofertar como os interpretados por Mark Strong e Joel Fry.
Isso ocorre porque invés de aprofundar esses personagens, que a câmera busca sempre que estão em cena, escolhe-se fazer sequências de novas roupagens de músicas atemporais enquanto vemos o jogo de gato e rato das protagonistas. Embora tenha gostado bastante das músicas, o uso desequilibrado contribui para a falta de profundidade da trama e quem mais sofre com isso é a própria figura central do filme.
Entendo que o projeto de recontar a história dos vilões de contos de fadas passe por incertezas. Afinal, é necessário desconstruir personalidades emblemáticas para captar identificação e apoio do público. Cruella sai a frente de outros filmes do mesmo nicho por não esconder sua subversividade, contudo até que ponto podemos chamar geniosidade, genialidade e imposição de suas vontades de princípios de psicopatia? Em qual momento os motivos e ambições de Cruella são fortes o bastante para que ela assassine internamente Estella? Quando seus amigos e parceiros de golpes se tornam escalada?
São muitas as indagações que as motivações e viradas da personagem despertam, sem nunca chegar a respostas cabíveis que não sejam de ordem determinista. O quadro é ainda mais preocupante se lembrarmos das outras obras do estúdio relacionados a personagem e associarmos como Estella se transformou da garota conformista e dócil na própria Baronesa.
Apesar dos altos e baixos, a sensação que fica ao final de “Cruella” é ter passado o final de semana entregue a um bom clássico da Disney. Pode faltar profundidade, mas sobra um visual impecável e músicas punks para emergir nesse nicho. É um filme para lembrar como o cinema pode ser divertido e arrancar risadas despretensiosamente, até mesmo de Cruella DeVille.