Você sabia, caro leitor, que a Marvel Comics, a editora que publica o Homem-Aranha e todos os personagens que dominaram a cultura pop de uns anos para cá, quase foi à falência em meados dos anos 1990? Pense nisso um momento e imagine como seria o mundo hoje, se tudo tivesse acabado ali… A editora foi salva por seus contratos com a Toy Biz, varejista de brinquedos – de propriedade do esquisito Ike Perlmutter, que mandou nos filmes do Marvel Studios por uns anos e parece ele mesmo um vilão de gibi – e com estúdios de cinema. Foi nessa época que a companhia vendeu para estúdios como 20th Century Fox e Sony/Columbia Pictures os direitos de suas propriedades intelectuais, ou seja, seus personagens mais famosos.
E a Sony/Columbia fez Homem-Aranha, o filme do mais popular super-herói Marvel. Não deixa de ser curioso, revendo-o hoje, o quanto o estúdio acertou em praticamente todas as decisões a respeito da produção – a começar pela escolha do diretor Sam Raimi – e o quanto ele se tornou importante dentro da indústria hollywoodiana. Homem-Aranha não apenas trouxe de vez os super-heróis para as telas de cinema, depois do embaraço gigantesco de Batman & Robin (1997) e dos sucessos mais contidos de Blade: O Caçador de Vampiros (1998) e X-Men: O Filme (2000). Em uma era em que se tornou possível mostrar os poderes desses personagens com o desenvolvimento da computação gráfica, ele também ditou o rumo para os blockbusters que viriam.
A TÁTICA BRILHANTE DE RAIMI
Claro, muita gente sempre amou o Homem-Aranha, tendo crescido com ele e seus quadrinhos ou desenhos animados ou mesmo com a série de TV esquisita e de vida curta dos anos 1970. Mas também houve muita gente que passou a conhecer o personagem com este filme.
A inteligência da abordagem de Sam Raimi se manifesta aí: o público precisava estabelecer uma conexão emocional com o personagem e foi isso que ele entregou ao fazer um filme de origem para apresentá-lo, com um elenco carismático e a boa dose de “grandes poderes trazem grandes responsabilidades” – o lema que se tornou associado ao herói desde o começo da sua carreira nas HQs, criado por Stan Lee e Steve Ditko.
Em si, a origem do Aranha é triste: ele é um super-herói nascido de uma tragédia e movido por um sentimento de culpa. Peter Parker é um nerd de marca maior que, um dia, é picado por uma aranha radioativa – ou geneticamente modificada, no caso do filme – e adquire poderes aracnídeos com os quais ele primeiro tenta apenas ganhar dinheiro. Certa noite, um ladrão mata seu tio Ben e Peter o persegue. Quando o encontra, descobre que era um sujeito que poderia ter detido dias antes, mas não o fez simplesmente porque não deu a mínima. É um negócio forte. Não é à toa que o personagem se tornou tão querido.
Raimi e o roteiro do filme de autoria de David Koepp – com direito a contribuições não creditadas de uma porção de gente, incluindo James Cameron que flertou com um longa do herói nos anos 1990 e inventou as teias orgânicas presentes neste aqui – até amplifica esse sentimento de empatia. Vemos Peter penando desde a primeira cena, correndo atrás de um ônibus e a única passageira que parece lhe tratar com um pouco de humanidade é o objeto do seu amor.
O CORAÇÃO DO FILME
Em muitos filmes de super-herói, o interesse romântico do protagonista era algo perfunctório, estava lá apenas por estar para que as produções não parecessem tanto “filmes de meninos”. Aqui, é essencial desde os primeiros minutos da história: Peter Parker, interpretado por Tobey Maguire, é apaixonado pela sua vizinha Mary-Jane Watson (Kirsten Dunst), e quase tudo que acontece com ele é em decorrência disso. Tanto que o momento mais icônico e lembrado deste filme, hoje, é a cena do beijo dos dois com o Aranha de cabeça para baixo.
Essa cena fez o público feminino se interessar por filmes de heróis e ajudou a modificar a percepção geral da cultura nerd nas mentes do mundo todo. De repente, ser nerd era legal, podia ser até romântico, e aqui estamos, duas décadas depois – claro, desde então se viu muita misoginia e preconceito nesse mundo, mas o filme não tem culpa disso. E se qualquer filme do Marvel Studios hoje tem uma plateia feminina grande, bem, agradeçam a Homem-Aranha e a Tobey e Kirsten, tão adoráveis juntos em cena que os espectadores simplesmente não resistiram.
Então, durante o filme, Peter ganha poderes, perde o tio, vira o Aranha e tenta equilibrar a vida super-heróica com o amor por Mary-Jane. Como não sentir empatia pelo personagem? Aí entra a figura de Tobey Maguire também. À época, era um tipo diferente, uma presença interessante que tinha aparecido em iscas de Oscar como A Vida em Preto-e-Branco (1998) e Regras da Vida (1999). Não sou tão fã dele quanto a maioria – ainda acho que ele foi bobão e chorão demais como Peter, de um modo que o personagem nos quadrinhos nunca foi, e seu Aranha quase nunca teve a agudeza e a eletricidade humorística que o definem.
Mas, assim como foi com Michael Keaton em Batman, que funcionava no universo de Tim Burton, Maguire inegavelmente funciona dentro da visão de Raimi, e merecidamente conquistou inúmeros fãs. O Peter Parker de Raimi é um bom rapaz, uma pessoa boa impulsionada por uma consciência moral. Ainda assim… como ator e caracterização do personagem, prefiro Tom Holland, e podem vir brigar comigo, nerds.
Enfim, escalar Maguire e Dunst – outra que sempre pareceu mais interessada em filmes alternativos do que em blockbusters com efeitos visuais – foi mais um golpe muito inteligente de Raimi. Eles são o coração do filme e isso faz falta a muitas produções desse tipo.
NEM TÃO AMALUCADO COMO PODERIA
Na época, Sam Raimi era uma incógnita, conhecido pela trilogia Evil Dead: A Morte do Demônio, filmes de terror de inventividade gigantesca, inversamente proporcional aos seus orçamentos modestíssimos. O diretor parecia uma escolha estranha para comandar um projeto multimilionário, mas tinha duas coisas a seu favor: ele amava os quadrinhos do Aranha e, de certo modo, já tinha feito um “filme de super-herói” com Darkman: Vingança Sem Rosto (1990), uma obra tão cult e maravilhosa quanto sua trilogia de terror. Seu amor pelo personagem é palpável, e sua abordagem fez o filme.
Afinal, Homem-Aranha é um filme que sabe claramente o que quer e oferece isso à plateia: um clima de diversão, sem medo ou vergonha de abraçar o espírito tolo das HQs como X-Men, por exemplo, teve. Realismo passa longe aqui, até no que tange à escalação dos atores: os adolescentes do filme, incluindo Maguire e Dunst, são aqueles jovens de 25, 30 anos que Hollywood adora nos empurrar.
Não há razão narrativa, por exemplo, para o inimigo do herói, o Duende Verde – interpretado por Willem Dafoe de forma deliciosa, combinando canastrice e poder – ser criado ao mesmo tempo em que o herói. Também ficam nebulosas as razões pelas quais, na segunda metade do filme, o Duende tenta convencer o Aranha a se aliar a ele. É um filme consciente da bobagem que está mostrando ao público e não tenta disfarçá-la com psicologismos ou “clima sombrio”. Pelo contrário, é colorido e amalucado, nos convidando a nos divertir com ele.
O maior problema de Homem-Aranha, inclusive, é não ser amalucado o bastante. Algumas coisas não envelheceram bem, como parte dos efeitos – a computação gráfica, como nas cenas do herói viajando pelas paredes, ou quando a diretoria da Oscorp é desintegrada e viram “esqueletinhos”, é muito ruim pelos padrões modernos e já eram esquisitas em 2002. A armadura do Duende também é desinteressante visualmente, tornando-o parecido com um vilão dos Power Rangers. E para os admiradores do estilo de Sam Raimi, sente-se falta de um pouco mais da porra-louquice com a câmera que o tornou conhecido. O diretor ainda parece contido aqui, e felizmente ele se soltaria mais nos filmes seguintes.
APOSTA PRECISA EM PETER PARKER
Mas nada disso importou: Homem-Aranha foi a maior bilheteria no seu ano de lançamento e o público pôde ver, maravilhado, coisas que antes só podiam ser contempladas nas páginas de um gibi ou em um desenho animado. Foi uma produção beneficiada muito do momento histórico: lançado alguns meses depois dos atentados de 11 de setembro, Homem-Aranha saciou o apetite mundial por uma dose generosa de escapismo e fantasia e, de quebra, ainda canalizou um sentimento pró-Nova York. Não é por acaso que, a certa altura da história, um grupo de cidadãos nova-iorquinos joga pedras no Duende Verde para ajudar o herói ou que o Aranha se balance em frente à bandeira dos Estados Unidos no final.
Acima de tudo, porém, mais do que os efeitos ou a aventura em si, o que conquistou as plateias foi o personagem. Eu que li centenas de HQs do Homem-Aranha, sabia que mesmo um filme mediano do herói já conquistaria o público, mas, ganhamos algo ainda melhor.
Nunca falha: sempre que Hollywood contou – direito – a história de um jovem ganhando grandes poderes e aprendendo a lidar com o peso deles, o resultado teve grande impacto junto ao público. Funcionou com Star Wars, Harry Potter, Matrix. E funcionou também com Homem-Aranha, justamente porque seus realizadores tinham consciência da força do personagem e sua história, e a contaram de maneira simples e com ingredientes cativantes.
E visto como está todo mundo aguardando uma aparição do Aranha de Tobey Maguire no vindouro Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, é seguro dizer que o público ainda se sente cativado por esta versão do herói em particular.