Depois de ‘Parasita’ ganhar o público e o Oscar de melhor filme em 2020, o mundo passou a olhar com mais atenção para as produções sul-coreanas no cinema. Atenta às tendências do mercado audiovisual, a Netflix anunciou um investimento de US$ 500 milhões na produção de conteúdos do país, criando um nicho específico ao popularizar doramas (como são chamados os dramas coreanos). Assim, era apenas questão de tempo para que alguma dessas apostas conquistasse o público da plataforma, como aconteceu com ‘Round 6’.

A série não possui uma premissa inovadora até mesmo para o streaming: um grupo de pessoas é colocado a frente de várias provas de sobrevivência em troca de um prêmio que mudará suas vidas. A partir desse mote, pequenos diferenciais no roteiro e uma direção assertiva de Hwang Dong-Hyuk conseguem prender a atenção do público durante todos os nove episódios.

A primeira diferença de outras produções como a japonesa ‘Alice in Borderland’ é que os participantes não são aleatoriamente selecionados, mas, se tratam de pessoas endividadas e precisam do prêmio generoso em dinheiro. Indo mais além e sugerindo uma verdadeira reflexão acerca do capitalismo, todos os envolvidos decidem encerrar o jogo, mas acabam voltando por vontade própria mesmo sabendo do risco de morte.

Para melhor ilustrar tais conflitos, acompanhamos Seong Gi-hun/ participante 456 (Lee Jung-jae) como protagonista. Endividado, ele explora a mãe, negligencia a pouca convivência com a filha e ainda é viciado em apostas. Apesar de optar sair do jogo, quando volta a sua realidade, a doença recém-descoberta da matriarca o leva novamente às provas mortais e ganhar o prêmio.

Desde o protagonista até outros participantes, o desenvolvimento dos personagens é uma das maiores fragilidades do roteiro. Seong Gi-hun apresenta essa motivação repentina e pouco aprofundada, além de ser o típico protagonista em redenção pessoal ao valorizar a relação com o Il-Nam/jogador 001 (Hideo Kimura), um idoso pelo qual ele tem muito mais estima e cuidado em comparação à própria mãe no mundo externo.

Na competição também existe figuras unilaterais como o vilão mau-caráter e sem escrúpulos, Jang Deok-su/ participante 101 (Heo Sung-tae), e até mesmo os mal escritos como Han Mi-nyeo/ participante 212 (Kim Joo-ryeong) que seria um grande exemplo de hipocrisia e ambição já que ela é a primeira a implorar pelo fim do jogo, mas, ao voltar, busca qualquer forma de aliança para vencer. Neste caso, o grande problema é a abrupta transformação da personagem sem nenhum interesse em aprofundá-la.

Mesmo sem tanto aprofundamento, os personagens de “Round 6” são marcantes suficientes graças à atuação do elenco. O próprio Lee Jung-jae dá um show como protagonista e consegue facilmente ganhar a empatia do público ao sair de feições caricatas e engraçadas para mostrar todo o drama e peso de ver pessoas morrendo de forma tão abrupta.

O aproveitamento cultural

Ainda falando sobre o desenvolvimento de personagens, existem dois exemplos muito bem aproveitados para mostrar um pouco da cultura coreana. Kang Sae-byeok/ participante 67 (Jung Hoyeon), é o melhor, pois, ela fala de uma questão específica: a divisão das duas Coreias, sendo uma imigrante que tenta levar toda a família para a Coreia do Sul. Da mesma forma, Sang-Woo/ participante 218 (Park Hae Soo) apresenta uma parte da cultura oriental sobre a visão de sucesso pessoal estar atrelado ao sucesso profissional e todas as cobranças da família e comunidade que este status desencadeia.

Algo que sempre valorizo ao assistir produções que não são na língua inglesa é a facilidade de abordar temas específicos de seus países, uma forma de mostrar questões próprias da cultura para o mundo. Quando essa abordagem é bem-feita, como em ‘Round 6’ é um ganho para todo espectador, afinal, para os coreanos existe a representação de se ver nessas narrativas e para o restante do mundo, o conhecimento de descobrir e entender esses dramas.

Tropeços e futuro da série

Dentro do jogo, toda dinâmica entre personagens é muito bem explorada, porém, paralelamente, o policial Hwang Jun-Ho (Wi Ha-Joon) consegue se infiltrar no grupo de organizadores das provas para investigar o sumiço de seu irmão atrelado ao jogo. Na maior parte de “Round 6” o seu envolvimento é bem feito e protagonizado por cenas tensas que prendem a atenção tanto quanto as provas, mas, o seu desfecho é decepcionante por não influenciar na narrativa principal.

Apesar de desapontar, o policial possui uma finalização em aberto, indicando a continuação da série. Particularmente, sou contra uma segunda temporada devido ao final satisfatório, mas, se tratando da Netflix, a continuação provavelmente vai acontecer. Em todo caso, acredito que, além de existirem narrativas boas para essa continuidade, é também uma boa oportunidade para acompanhar uma produção coreana, sabendo, é claro, o momento para encerrar a série e não ficar se alongando e perder o propósito pelo caminho como ocorreu com ‘La Casa de Papel’, outro sucesso absoluto no streaming.

Referências de produções com a premissa semelhante a ‘Round 6’ não faltam: ‘Jogos Vorazes’, ‘Alice in Borderland’, ‘O Poço’, ‘Jogos Mortais’, ‘3%’ e tantas outras. Apesar das semelhanças e até acusações de plágio, ‘Round 6’ se beneficia por apresentar um visual extremamente violento, mas não injustificado. A série não cai na armadilha de mostrar a violência apenas para chocar o público, mas usa dessa premissa para desenvolver os personagens, fazer críticas sociais e representar a cultura sul-coreana, três objetivos amplamente alcançados.  

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