Antes de meter a cara, aprender com os outros

Meu primeiro contato com um festival foi através do Festival de Teatro da Amazônia. Já faz quase 10 anos. Tava ali mais pela curiosidade pela novidade do que por ter consciência da importância daquele encontro. Mas posso dizer que desde o primeiro momento ali, me coloquei numa postura de aproveitar ao máximo aqueles dias, e me apaixonei. Na pior das hipóteses, era a chance de ir 10 dias seguidos ao Teatro Amazonas, assistir a 20 espetáculos, encontrar os colegas, ouvir a opinião de atores, diretores, dramaturgos atuantes em outras cenas do Brasil. Valia muito a pena.

No primeiro festival, em 2009, fui participando com uma peça, “Ainda Ontem”, meu primeiro trabalho como ator. No ano seguinte, fui apenas como espectador, e aí sim vivi intensamente a experiência. Neste ano, estava ainda mais empolgado porque estaria aqui Márcio Abreu, diretor da Cia Brasileira de Teatro, um dos principais diretores de teatro do Brasil.

Lembro que à época tinha uma impressão muito ruim de determinados grupos, diretores, atores daqui da cidade. Achava-os pobres, carentes de estudo, dedicação. Parecia-me claro que Manaus tinha artistas de qualidade, mas ao mesmo tempo, me incomodava muito a maneira pouco profissional com a qual vários colegas conduziam suas carreiras. Nutri em mim uma ideia de que o teatro daqui estava atrasado em relação aos grandes centros (mesmo sem nunca ter visto uma peça de fora até então), e fiquei até certo ponto apreensivo pelo Márcio estar aqui vendo estes trabalhos. ‘Ele vai ter uma impressão muito ruim de nós, vamos passar vergonha‘, pensei.

Mas, para a minha surpresa, Márcio e os outros dois jurados (Marcelo Denny e George Mascarenhas) nos trataram com muito respeito e genuíno interesse. Mais do que isso: nos trataram como iguais, mesmo com todas as diferenças.

Das experiências que tive mais no início da carreira, essa foi a maior, trago com muita força até hoje. Foi a primeira vez que me dei conta de que não temos que nos sentir inferiores a profissional de lugar nenhum. Que o nosso jeito, precário, é capaz de proporcionar obras verdadeiras exatamente quando se apropria com inteligência dos elementos que nos formam.

Os curtas da Artrupe, grupo do qual faço parte, eram campeões de não passar em festival nenhum. O nosso primeiro de todos, “A Segunda Balada”, até passou no Amazonas Film Festival, mas foi só.

Por mais que o AFF tenha cumprido um papel determinante na formação de toda uma geração de realizadores amazonenses, ele não serve muito de parâmetro, né? Pelo dinheiro envolvido, os debates que aconteciam, os convidados… Estava bem claro que os diretores locais, bem como seus filmes, eram visitas. Nós podíamos ficar à vontade, comer, beber, ficar em um hotel muito bom, mas o festival mesmo, dentro dos seus maiores objetivos, era para os adultos.

Nos demos conta de que estávamos cometendo o erro comum de contar histórias de longas comprimidas dentro dos curtas, o que denunciava nossa falta de familiaridade com estas narrativas de curta duração. Não era à toa que não passávamos em lugar nenhum. Nossas ideias realmente não se concretizavam com potência suficiente para confrontarmos nossa estética com a de realizadores mais experimentados, estávamos atrás. Normal. Com o tempo aprendemos, e devagarzinho os nossos trabalhos começaram a ser exibidos em outros lugares.

É muito bom viajar para representar o seu filme em um festival. Parece que a experiência em torno da obra só se completa realmente quando ela é exibida para pessoas de outros contextos, confrontada por pontos de vista que não conhecem a cultura e hábitos daqui. As respostas que chegam normalmente são generosas, abundantes, e muito importantes para que os defeitos do filme fiquem mais fáceis de serem notados, e não se repitam.

Tem papel muito marcante na minha vida a maneira como fui recebido durante o Festival Guarnicê, no Maranhão. Nunca fui tão respeitado como artista. As pessoas – não apenas da coordenação do festival, mas o público comum – tinham curiosidade sobre o trabalho, queriam saber detalhes, demonstravam interesse nos conceitos aplicados no filme. Oposto ao que acontece aqui (quando lançamos um trabalho na cidade o clima é mais de desconfiança e desdém do que atenção). Especulo que isso, infelizmente, não é exclusividade nossa, acontece em muitos lugares.

Pensamos o quanto seria importante trazer pra Manaus uma iniciativa como essa. Que na verdade, trata-se de um encontro pra conversar sobre filmes, ouvir opiniões que possam contribuir para aquela ideia de curta que ainda tá só na cabeça. Valia a pena tentar.

Botar pra fazer

Fizemos a primeira edição do Olhar do Norte em janeiro de 2018. E assim como qualquer iniciativa cultural sem aporte financeiro, começamos devagar, invisíveis aos olhos de muita gente.

Homenageamos filmes amazonenses que gostamos, como Parente, A Última no Tambor, A Incrível História de Coti, Cachoeira, Jardim de Percevejos. Trouxemos Jorge Bodanzky para a abertura, com uma cópia de boa qualidade de Iracema. Veio também o João Dumans, um dos diretores de Arábia, filme que encerrou o festival, fácil um dos melhores filmes de 2018.

Pudemos trazer visibilidade para títulos que acreditamos, como Maria, O Necromante, Barulhos, Leco, Pés de Anta, Personas, Timbó. Agregamos o ótimo Walter Fernandes para estar com a gente nos debates, uma iniciativa que acreditamos e vamos vencer pelo cansaço.

Realizamos o festival em um meio termo muito complicado, que é fazer do jeito que acreditamos filosoficamente, ao mesmo tempo tendo que conciliar com o orçamento (zero) que tínhamos. É claro que a gente queria uma repercussão maior, mas, ao mesmo tempo, entendemos que era mais importante nascer de uma vez, do que já começar com o pé na porta.

Em 2019, o festival passaria por um teste muito sério. Ele tinha que crescer. Se desse a mesma repercussão que o primeiro, poderia ser um indicativo de que a cidade não se interessa por iniciativas do tipo, ou que os próprios realizadores não compraram a ideia. Pelo menos não com essa roupagem e alcance.

Mas, o II Olhar do Norte foi muito além das nossas expectativas. Dá pra dizer, tranquilo, que foi um sucesso.

Não chegamos perto de alcançar os números que o AFF alcançava (até porque tínhamos 0,034% do orçamento que eles dispunham), certamente deixamos de alcançar pessoas que se interessariam pela ideia, tem uma quantidade muito grande de coisas que ainda precisamos melhorar e ambicionar.

Mas, ainda assim, digo que foi um sucesso por conta da ideia que está por trás, do que alcançamos de fato aqui.

Os profissionais de cinema não vivem uma vida confortável financeiramente, com grana para realizar seus projetos. A esmagadora maioria está fazendo filme na raça, gravando longa com dinheiro de edital de curta, recebendo cachê abaixo do valor de mercado, gravando em casa, na casa do vizinho com equipamento emprestado. A ideia do cinema com tapete vermelho e roupas caras, além de cafona, está muito longe de ser aplicada no Brasil.

A falta de dinheiro para realizar um grande festival, neste caso, acabou mostrando para a gente que não faz mais sentido pensar nessa estética de evento. Mais vale ser sincero, informado sobre como estão os nossos meios de produção e realizar um festival que dialogue com isso.

Das melhores peças que vi, várias foram apresentadas no nosso “precário” festival de teatro. Os mecanismos de incentivo à cultura nos marginalizam desde sempre, o nosso entorno não contribui, mas mesmo assim somos capazes de atingir o sublime. Exemplos não faltam.

Sérgio Andrade, Juliano Gomes, Pedro Diogénes e Gabriel Martins: convidados especiais do Olhar do Norte

Exibimos Inferninho, de Pedro Diógenes e Guto Parente, no encerramento. Filme 9,0/10. Um longa que mesmo pequeno de tamanho e orçamento, é gigante no que alcança, dos melhores filmes brasileiros recentes, simples e genial. A Terra Negra dos Kawa na abertura, o melhor filme do Sérgio Andrade, em que ele claramente evoluiu como diretor, fazendo um filme em que os indígenas são protagonistas de maneira leve, com mais nuances, num filme capaz de criar imagens muito marcantes. Exibimos Temporada e Ela Volta Na Quinta, dois exemplares de André Novais Oliveira e a sua Filmes de Plástico, nomes que estão nos principais festivais do mundo, e que tendem a ser gigantes em pouco tempo.

Todos estes filmes e realizadores são maiores que o Olhar do Norte. No sentido de: todos eles poderiam negar participar do festival, não emprestarem a credibilidade dos seus filmes para a gente, pois nós estamos começando. Seria normal, a gente entenderia. Mas ainda bem que foi diferente.

O que eles (além do Juliano Gomes, Gabriel Martins, Elen Linth, Tom Zé, Luiza Azevedo, Ismara Antunes, João Gabriel Riveres) fizeram foi o que o Márcio Abreu já tinha feito. Eles nos trataram como iguais, entenderam a nossa condição e compreenderam que, hoje em dia, a nossa sobrevivência está ligada a iniciativas que nos aproximem. A generosidade deles vai nos ajudar a amadurecer, até que no futuro possamos ter a mesma capacidade técnica que eles, e assim poder contribuir com quem está começando. Todos ganham.

E parece que o público e realizadores também entenderam isso. Todas as noites ficaram cheias. Em algumas tinha bastante gente sentada no chão. As oficinas tinham mais de 100 inscritos cada em apenas um dia. Imaginar isso antes de começar era um sonho extravagante. Estávamos enganados.

Acho que entendemos que mais vale ter Inferninho, Kawa, Temporada, que são filmes que dialogam com as nossas condições, do que trazer filmes de maior grife, que causariam outros debates, outras procuras que não dialogam com o nosso tamanho.

Muita coisa importante fica pra mim dessa 2ª edição, mas se tivesse que escolher apenas uma, seria a cerimônia de premiação.

Elas normalmente são o que de pior os festivais têm, pois são longas, formais, chatíssimas, além de muito desagradáveis para quem não ganha prêmios. Mas o que a gente viu foi um sentimento de autoestima que fazia muito tempo que não sentia por aqui. Dava pra sentir no ar o clima de satisfação daquelas pessoas por terem os seus trabalhos valorizados. É claro que tudo ainda permaneceu muito simbólico, mas senti que momentos como esses nos dão um gás a mais para produzir um próximo filme ainda melhor, participar novamente do festival, criar soluções para que o filme tenha mais caminhos a percorrer, alcance mais gente. (ainda) Vale a pena sonhar.

E agora?

Da mesma maneira que a segunda edição precisava ser melhor que a primeira, a terceira vai precisar ser maior que a segunda. Essa autoestima que estamos sentindo pode levar a um crescimento de toda uma cena, ou pode ser um ato isolado que fica no tempo e é esquecido, como foi a Mostra do Cinema Amazonense.

O que dá pra dizer é que a gente adora fazer o festival, e nem passa pela cabeça não continuar. Na verdade, sempre pensamos o festival como uma iniciativa de longo prazo, algo que só tem a crescer com o tempo, ganhar maturidade. Vai ficar bom de verdade daqui a alguns anos.

Conversando com realizadores que participaram, e outros que não inscreveram filmes, percebi um ânimo para gravar novos curtas, muito por conta do público que compareceu às sessões.

Pude sentir como era genuíno o interesse e disponibilidade do Juliano, Pedro, Gabriel, João, Ismara em conhecer o público daqui, compartilhar experiências, assistir aos nossos filmes, também ouvir o que temos a dizer. Receber esta generosidade de pessoas com carreiras já estabelecidas dá uma rejuvenescida, nos faz ver o quão importante é seguir os bons exemplos.

Contamos com um apoio muito atencioso da Manauscult, na figura do Dyego Monzaho e do Márcio Braz. É bom ver que nossa iniciativa é capaz de dialogar com o poder público municipal.

Ou seja, tivemos apoio de muita gente, sentimos que o festival cativou algumas pessoas, o público comprou a ideia, terminamos com um saldo amplamente positivo. Maravilhoso.

Atuação de Isabela Catão em “A Goteira” foi lembrada durante a cerimônia de premiação

Mas… é que o Brasil está na contramão de tudo isso, né? Com o congelamento da Ancine, toda uma cadeia de profissionais (são estimados 300 mil empregos diretos e indiretos, mais que a indústria têxtil e farmacêutica) está sem saber como vai ser o restante do ano. 2020 então, distante demais.

A Petrobras, por conta da nova política de governo de Bolsonaro e Paulo Guedes, já anunciou que não vai mais continuar com o investimento em iniciativas culturais, e dentro deste leque estão vários dos principais festivais de cinema do Brasil. Mesmo que o valor destinado seja ínfimo para a estatal, e vital para a existência destas iniciativas que interferem no trabalho de profissionais de todo o país.

Ouvimos de amigos que eles voltarão a fazer filmes, mas neste ano tivemos poucos inscritos. Muita gente perguntava porque a curadoria selecionou poucos filmes do norte. A resposta é: recebemos poucos filmes. E é natural, vai fazer filme com que estímulo?

A terceira edição vai ser realizada, isso sabemos. Mas é impossível saber como estará a nossa classe, se vai ter condições mínimas que garantam que a nossa produção continue caminhando pra frente.

Assim como o Olhar do Norte, há outros exemplos de iniciativas que indicam que vivemos um período de colheita de uma política de investimento feita no audiovisual há alguns anos. Não é à toa a participação de cada vez mais filmes brasileiros nos principais festivais de cinema do mundo. Neste ano, o Brasil terá cinco produções no Festival de Cannes, um recorde, talvez seja o país com mais filmes nesta edição do festival.

Mesmo que ainda seja relativamente cedo, creio que é importante dizer o quanto é cansativo repetir o óbvio: política de investimento em cultura gera dividendos interessantes para seus países, cumprindo papel na disseminação da sua cultura para outros lugares, com mais desenvoltura e eficácia que outros setores que recebem cinco, seis vezes mais investimento. Que o valor que circula no audiovisual brasileiro vem de um fundo que retroalimenta o setor, movimentando a economia de centenas de municípios pelo Brasil. Que o cerceamento dessa política é claramente justificado por posicionamento ideológico, e não por análise técnica.

Mas como disse, o Olhar do Norte vai permanecer. Porque é muito bom fazer um festival. É maravilhosa a sensação de lotar um teatro durante 4 dias exibindo filmes amazonenses, da região norte, de fora dos grandes centros. De realizar algo que a gente consegue sentir que faz alguma diferença para os que se interessam. Descobrimos que é tão bom quanto fazer um filme. Agora lascou de vez.

Não dá pra saber até onde vai, mas sinto que vamos ficar muito tempo além do que eles. O tempo tá ao nosso favor, apesar da escuridão que chega depressa.

CONFIRA MAIS FOTOS DO OLHAR DO NORTE 2019:

Urna ‘Aquelaestradiana’ do Festival Olhar do Norte

Luiz Vitalli (à esq.) recebeu prêmio de Melhor Atuação por “Vila Conde”

Juliano Gomes, da Revista Cinética, e o diretor Sérgio Andrade, de “A Terra Negra dos Kawá”, em debate no Olhar do Norte

Oficina de Ismara Antunes sobre assistência de direção

Elen Linth, Tom Zé e Luiza Azevedo: os jurados do Olhar do Norte 2019