Chega a ser curioso notar que uma das cineastas mais interessantes de sua geração, Claire Denis, seja tão pouco conhecida pelo grande público. Nome respeitadíssimo dentro do circuito dos festivais de arte e do meio audiovisual europeu, Denis é uma diretora que você precisa ir atrás para conhecer o trabalho, pois ele não nos é oferecido com facilidade.
Um exemplo disso é o fato de um longa como Bom Trabalho (1999), uma das obras-primas da década de 1990, ainda ser um filme que poucos assistiram tendo em vista a dimensão que esta obra ocupa para a crítica.
Mas, na verdade, isso é um preço que a diretora paga por não ceder ao cinema narrativo tradicional, da história focada em um protagonista que tem um objetivo, precisa superar adversidades divididas em três atos e consegue (ou não) o que queria ao final da jornada.
O cinema de Denis prefere se focar na sugestão. Ela apresenta um enredo, os personagens que fazem parte da trama, um contexto que interliga estas pessoas a um determinado ambiente e, a partir daí, posiciona a sua câmera nos momentos em que os personagens agem pelo instinto, por algum impulso que está inserido dentro da história que acompanhamos, mas não subordinado a isso. São filmes de fluxo em que a diretora divide a responsabilidade com o público sobre o significado do que está sendo visto. O espectador precisa completar.
Com o andamento das novas mídias, além de outros fatores, a capacidade imaginativa e de interpretação de texto (imagens e sons) do público médio caminha para trás de maneira orgulhosa e decidida. O mercado se adapta a isso oferecendo cada vez mais filmes que não instigam o público a interpretar, mas que dão tudo pronto, com história e mensagem.
EMOÇÕES A PARTIR DO CAOS
Minha Terra, África (2009) é tido como um dos filmes mais “fáceis” de Denis. A temática envolvendo os conflitos de luta armada na África é um dos assuntos mais quentes abordados pela diretora na sua filmografia, o que somado ao nome de Isabelle Huppert (“Elle”) no elenco, contribuiu para que este trabalho seja o seu filme mais reconhecido pelo grande público. Mesmo assim, aqui o seu cinema permanece direcionando a câmera para a lacuna, para o que não se pode assegurar, mas presumir.
Em um país africano (nunca identificado) é iniciado um confronto entre rebeldes e o estado. O clima de tensão é contínuo, e deixa em estado de alerta os moradores do local. No meio disso, Maria Vial (Isabelle Huppert) está numa situação difícil. Encarregada de uma plantação de café, ela se vê abandonada por seus funcionários que decidem largar o trabalho por conta do conflito armado. Tentando fazer com que tudo ocorra normalmente, apesar do caos ao redor, ela se vê transitando entre os mundos dos personagens, cada um com seus interesses.
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A ação é dividida em diferentes linhas de tempo. Começamos vendo o desfecho, e só depois entendemos como que se deu tudo aquilo. Entender é modo de falar. Não vemos as ações mais decisivas do filme quase em momento nenhum. Vemos uma parte disso, imagens que sugerem o que aconteceu, ou que apresentam a reverberação de um acontecimento que não está em quadro.
É sobre as emoções que todo o caos desperta nos personagens, mais do que vermos esse caos em cenas de ação com conflito armado. Apesar de haver dezenas de mortes no filme, pouquíssimas, ou quase nenhuma é mostrada em quadro. É também sobre as mortes, mas indiretamente.
Para dar conta disso, Denis elabora planos em movimento, com detalhes do cenário, das expressões dos atores, de objetos de cena, figurino, com a ação já no meio, ou no seu fim, e que a compreensão das motivações dos personagens nunca é suficientemente clara.
FALSA ILUSÃO DE NORMALIDADE
É importante dizer que a tradução em português ao título original, White Material, deixa de abarcar parcela significativa do que este nome carrega. “Coisa de branco” num ambiente saturado de históricas questões políticas, econômicas e sociais é mais um fator a pesar para a contribuição da miséria e insegurança do lugar. A falta de consciência que o branco demonstra em questões que ele, de fato, não é capaz de compreender na vida dos pretos africanos é um fator catalisador para que os conflitos latentes transbordem.
A figura da mulher branca que quer manter a ilusão de normalidade num ambiente que ela está muito longe de controlar dá o tom do filme, auxiliado pela atuação sempre energética de Huppert. Ela está ali, com boa intenção, mas se atrapalha na maneira que age. E isso ocorre porque ela, no final das contas, tem uma interpretação muito limitada sobre os acontecimentos no local, pois sempre analisa tudo pelo seu ponto de vista de colonizador, a partir de relações comerciais.
Maria acha que não tomar partido é a maneira de não interferir no que já é ruim. Tenta dialogar com os rebeldes, com o prefeito, o ex-marido, o filho, o boxeador, o afilhado e a mãe deste, mas no fim das contas não cabe em nenhum lugar, pois o seu lugar não é ali, mesmo que ali ela more e constitua família. Quando ela conversa com Jean-Marie, seu funcionário, sobre o fato de concordarem em não querer ir embora dali, ele faz a ressalva, de que não vão embora por diferentes motivos: “você não vai embora porque você não quer que peguem o que você tem”.
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E mesmo quando o branco é nascido e criado neste local, ou seja, é um africano, a cor da pele e tudo o que está ao redor disso num lugar de esmagadora maioria de negros, o tal white material, tem interferência no contexto social. Os desdobramentos trazidos por Manuel (excelente atuação de Nicolas Duvauchelle, imprevisível), demonstram o quanto as contradições que a participação do branco nestes conflitos colocam ainda mais fogo nos conflitos.
É sempre possível assistir a um filme de Claire Denis, terminá-lo, e não saber o que aconteceu, quem fez o quê, e porque as coisas aconteceram como aconteceram. Por conta disso, recomendo assistir ao trabalho mais de uma vez para compreender um pouco mais as motivações de cada personagem, pra que as peças do quebra-cabeça se tornem um pouco mais claras, na medida do possível, é claro.
Mas compreendendo ou não tudo o que está em quadro, o cinema de Claire Denis é gigante pela maneira poética como apresenta os seus conflitos, com imagens muito poderosas que causam sensações fortes mesmo que não necessariamente ancoradas em uma narrativa mais palpável. É uma diretora fundamental, que realiza filmes que certamente permanecerão em discussão por muito tempo.