Caro leitor, ano passado eu e o colega Ivanildo Pereira realizamos um Especial do Horror no Cine Set em comemoração ao querido mês de outubro, conhecido como Mês das Bruxas. Várias críticas, artigos, reportagem e listas voltadas ao cinema do medo fizeram parte do nosso especial. Em 2016, não poderíamos deixar de realizar uma segunda edição dele, afinal o gênero ainda tem muito a ser explorado e discutido.

Por isso, vamos realizar uma grande corrente do mal… ops… digo, uma programação que inicia-se hoje e vai até o final do mês. Para começar o trabalho fúnebre, vamos falar de 2016, um ano bem incomum aos fãs de terror. Enquanto os blockbusters americanos com suas produções milionárias apresentaram obras de qualidades questionáveis (BvS, Esquadrão Suicida, A Lenda de Tarzan, Independence Day – O Ressurgimento) até o momento, a indústria do terror percorre um caminho totalmente inverso, produzindo, em boa escala, “gemas de horror” acima da média e de resultados significativos no quesito “entretenimento assustador”.

É de praxe no cinema de terror a maioria das produções serem de baixo orçamento. Um custo-benefício eficiente para os estúdios que gastam pouco, mas arrecadam, muitas vezes, o dobro ou triplo do que investiram. E qual o grande diferencial deste ano para os outros? Por qual razão 2016 é considerado até o momento, o melhor ano do cinema de horror em muito tempo? Há três pontos fundamentais que são interessantes para compreender esta gênese e iniciar nosso pontapé desta segunda edição do Especial de Horror do Cine Set.


O ciclo do horror

Mesmo visto com maus olhos por parte da crítica e mídia, o horror sempre soube seduzir o público no cinema, muito pela sua essência básica de funcionar como uma válvula de escape para as neuroses do cotidiano. É, ao mesmo tempo, o fascínio quase perverso do ser humano em sentir medo, alinhado ao sentimento de impotência, de falta de controle sobre si, sobre a morte e violência que ajuda a liberar a nossa catarse de emoções do pavor e dos medo diários.

O mais bacana disso é que, como entretenimento, ele é mais complexo do que se imagina, não se resumindo a obras simples ou estereotipadas na maioria das vezes. Pelo contrário, um bom terror na sua essência discute, de forma ampla, temáticas que envolvem os valores e limites da alma humana, a violência, a maldade, as perdas, as aceitações da morte, entre outras tantas situações, experimentadas através de metáforas e simbolismos. É como se existisse um mundo real – aquele que vivemos – e uma realidade alternativa, esta explorada nos filmes que pagamos para ficar com medo, onde as regras da lógica não fazem parte.

Dentro disso, o horror sempre apresentou seus ciclos: os clássicos filmes de monstros da Universal (Drácula, Frankenstein, Lobisomem), os suspenses psicológicos (Psicose, O Exorcista, O Bebê de Rosemary), os horrores sociais (os Mortos-Vivos de George Romero), os Giallos italianos, os Slasher movies americanos tradicionais (Sexta-Feira 13 e suas crias) e pós-moderno revisionário (a franquia Pânico e seus filhotes) e os Found Footage malditos (iniciados a partir da revolução de A Bruxa de Blair). Como se pode notar, grande parte destes ciclos são sempre ressuscitados para atender a ganância dos produtores, o que deixa o gênero de tempos em tempos acomodado diante de franquias consagradas e remakes.

A Bruxa

2016, o melhor ano para o horror em muito tempo?

De 2000 para cá, o último ciclo de horror realmente interessante foi o de 2005. Nele, tivemos bons exemplares: Terra dos Mortos, de Romero, Rejeitados pelo Diabo, de Rob Zombie, Abismo do Medo, de Neil Marshall, Wolf Creek, de Greg McLean, O Albergue, de Eli Roth, A Chave Mestra, de Ian Softley, e Banquete do Inferno, de John Gulager.  Apesar de ótimas obras, este ano apresentou na mesma intensidade filmes ruins que contribuíram no desequilíbrio da balança.

Por sua vez, a safra de 2016, nesse aspecto, teve uma harmonia melhor. Se de um lado tivemos grandes filmes, do outro lado até as produções mais medianas do gênero funcionaram como entretenimentos eficientes. A Bruxa, de Robert Eggers até agora é o filme a ser batido. Quem procurou os jumpscares imediatos, com certeza se frustrou. Agora, se o objetivo foi usufruir do horror psicológico, o trabalho é um prato cheio, pois constrói uma verdadeira alegoria do macabro, valorizando o medo mais intrínseco, aquele que mexe com nossos valores e crenças. A verdadeira metáfora da bruxa é a conservadora mentalidade humana que enlouquece as pessoas. Um filme corajoso por fazer alusão ao satanismo e discuti-lo sob a ótica do fanatismo cristão, mostrando ser instigante e provocador.

Já no caminho do cinema de terror mais comercial, voltado aos potenciais sustos, Invocação do Mal 2, de James Wan, era um dos filmes mais esperados do ano e não decepcionou: ofereceu ao público um medo repleto de vitalidade, onde o horror e o lúdico se encontravam na produção da catarse de sustos. Nas plataformas do streaming como o Netflix, duas produções que não passaram no cinema chamaram a atenção: O Convite, de Karyn Kusama, e Hush – A Morte Ouve, de Mike Flanagan. O primeiro é um suspense psicológico que entrega um produto carregado de tensão claustrofóbica numa embalagem de paranoia à lá Hitchcock. O segundo é um jogo de gato e rato psicológico que mostra que até enredos batidos podem oferecer algo novo no cinema de horror. Ambos conduzidos com bastante firmeza pelos seus respectivos diretores.

10 Cloverfield Lane

Na linha do horror mais atmosférico, O Homem nas Trevas, de Fede Alvarez, não deixa o espectador respirar um minuto sequer, principalmente por saber explorar os espaços de uma casa escura para contar da melhor forma possível, a sua história assustadora. Rua Cloverfield 10, de Dan Trachtenberg, utiliza o suspense e mistério para desenvolver seu estudo das relações humanas diante da paranoia, alinhando bem no seu texto, o suspense e a ficção científica. Águas Rasas, do espanhol Jaume Collet-Serra, é uma bela pedida em um subgênero tão maltratado no cinema de horror como são as obras de tubarões. Homenageando Spielberg, o cineasta realiza um envolvente suspense com toques de horror, onde o ser humano se vê desafiado a sobreviver frente a um predador da natureza.

Na Europa, o austríaco Boa Noite, Mamãe, da dupla Veronika Franz e Severin Fiala, destacou-se pela sua fábula urbano-familiar ambígua e misteriosa, onde o terror não habita o imaginário de criaturas fantásticas e sim provém dos laços sanguíneos. Junto com ele, vindo do leste europeu, Landime Goes Click, de Levan Bakhia, utilizou o thriller psicológico para chocar e provocar sensações desagradáveis, utilizando como fonte de inspiração os trabalhos da década de 70 do finado Wes Craven, como Aniversário Macabro e Quadrilha dos Sádicos.

Mate-Me Por Favor

O cinema nacional de gênero, também mostrou sua força: Mate-me Por Favor, de Anita Rocha, é um estudo assustador e inquietante dos jovens da sociedade brasileira atual. O Caseiro, de Júlio Santi, é um elegante e refinado filme de fantasmas, enquanto Condado Macabro, da dupla André de Campos e Marcos DeBrito, faz uma bela sátira e homenagem aos slasher movies da década de 80 com muita reverência. E vale também citar a divertida antologia de contos brazucas Fábulas Negras, dirigida por vários cineastas nacionais como Zé do Caixão, Rodrigo Aragão, entre outros.

Sem contar que trabalhos mais regulares como o novo Bruxa de Blair, Boneco da Morte, Quando as Luzes se Apagam e Baskin cumpriram com eficiência a sua proposta de assustar o espectador. Não são geniais ou pelo menos ótimos, porém, funcionam como entretenimentos de terror escapistas. São por essas qualidades que 2016 está sendo um grande ano para o cinema de horror.

Invocação do Mal 2

O horror psicológico e seus realizadores

Robert Eggers, James Wan, Jaume Collet-Serra, Mike Flanagan, Fede Alvarez, Karyn Kusama e Anita Rocha… 2016 tem apresentado um número considerável de cineastas interessantes, e inclusive do ano passado, podemos ainda adicionar à lista David Robert Mitchell, de Corrente do Mal, e Jennifer Kent, de The Babadook. É um grupo heterogêneo que, dentro do cinema de horror, tem contribuído com alguns elementos essenciais que ajudaram 2016 a se diferenciar do restante dos outros anos.

O primeiro deles é a valorização da construção da atmosfera (e ambientação) do suspense e horror psicológico. Há sempre o cuidado de desenvolver de forma gradativa o horror, partindo de situações banais do cotidiano até que o medo e a tensão assumam as rédeas da equação. Algo que aproxima esses trabalhos da essência do cinema de John Carpenter e David Cronenberg da década de 80.

O segundo ponto é a forma de como contar sua história e os efeitos psicológicos dela no desenvolvimento dos filmes. A maioria deles (A Bruxa, Invocação do Mal 2, O Convite, Mate-Me Por Favor) parte de situações simples dos seus personagens até que eles passem por transformações (físicas e emocionais) assustadoras. Este ano, eles exploraram o horror voltado para o medo subjetivo, que mexe com nossos valores pessoais, questionando até que ponto vai à sanidade do ser humano. Todos os filmes com forte temática dramática e a partir dela, eram delineados os nortes dos conflitos psíquicos e instabilidades emocionais dos seus protagonistas. Até Invocação do Mal 2, apesar da temática sobrenatural, utilizava o drama familiar como o click responsável pelos eventos malignos que viriam acontecer.

Boa Noite Mamãe

E por fim e talvez o mais importante: 2016 apresenta trabalhos que construíram na gênese das suas histórias, o horror psicológico no seu viés mais assustador, uns de forma mais explícita (Invocação do Mal 2, Boa Noite, Mamãe), outros no estilo “artístico” (A Bruxa e O Homem nas Trevas) e alguns com propósitos de entretenimento (Águas Rasas e Rua Cloverfield 10). Mas todos souberam explorar muito bem nas suas premissas as metáforas e simbolismos e de como mexer com a mente humana na capacidade de criar monstros (na maioria das vezes na forma física do ser humano) e fantasmas, muito mais na sugestão do que na exposição.

Por estas razões, 2016 vem sendo interessante por resgatar o imaginário do horror através de jovens cineastas independentes, que têm abastecido o gênero com criatividade e vitalidade. Por fim, o público também valorizou os filmes de terror este ano, o que se refletiu nas ótimas bilheterias dessas produções, como é o caso de Invocação do Mal 2, O Homem nas Trevas, Quando as Luzes Se Apagam e Águas Rasas, produções baratas que deram ótimo retorno financeiro aos estúdios e até ajudaram alguns deles a recuperarem parte do dinheiro perdido em blockbusters que fracassaram comercialmente. Pelo menos 2016 aponta que, no novo milênio, o cinema de horror está carregado de uma força assustadora, indo do poético ao agressivo, o que coloca o gênero como um dos grandes destaques do ano, tanto artisticamente quanto economicamente, e oferece ótimos indícios de um futuro promissor.