Destaque da programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2020, “Mães de Verdade” é o novo filme da prolífica diretora japonesa Naomi Kawase (“Esplendor”, “O Sabor da Vida”). A produção bebe da fonte do melodrama para contar uma história de honra e pressões sociais com o pano de fundo da adoção de uma criança ainda que se estenda e complique a história mais do que o necessário. 

“Mães de Verdade” se divide em três momentos: primeiro acompanhamos a luta do casal Kiyokazu e Satoko Kurihara (Arata Iura e Hiromi Nagasaku) para conseguirem ter um filho. Após ele descobrir ser estéril, os dois encontram na adoção uma saída para este desejo. Em seguida, é vez de conhecermos Hiraki Katakura (Aju Makita), uma jovem de 14 anos que acaba engravidando inesperadamente. Sem o namorado assumir a paternidade e pressionada pela família, ela consegue apoio em um programa de incentivo à adoção localizado na região de Hiroshima. Por fim, a última parte trata sobre os dilemas das decisões de ambas as partes e o choque entre eles. 

País em que a questão da honradez é um dos pilares históricos e sociais, o Japão registra uma das mais baixas taxas de adoção no mundo com a possibilidade de 12% de uma criança residente de um orfanato conseguir um lar. Autora do roteiro ao lado Izumi Takahashi, Naomi Kawase retrata os tabus sociais presentes neste processo dos dois lados. A infertilidade de Kiyokazu, por exemplo, é sinônimo de humilhação como se ele fosse um fracasso ao propósito para o qual um homem teoricamente nasce. Nisso, o silêncio predomina entre o casal quebrado apenas quando o sofrimento de um doloroso processo de reversão passa do limite do tolerável. Do outro lado, o machismo mostra a sua face seja no processo de adoção com a necessidade implícita da mulher abandonar a carreira profissional seja com a secular e hipócrita problematização do corpo da mulher e sua relação com o desejo sexual. 

Encarada como uma vergonha pela família, Hiraki é despachada para longe do contato de todos que possam conhecê-la para evitar qualquer tipo de desonra maior, onde encontra outras tantas garotas rejeitadas. “Mães de Verdade”, porém, observa que através da empatia e do reconhecimento de dores semelhantes, como a triste comemoração de aniversário de uma garota de 20 anos grávida, também abandonada pela família, que é possível criar uma rede de afeto e protetora para permitir que o sofrimento seja encarado de frente e não mais camuflado, ajudando aquelas pessoas. 

Pena que essa delicada costura muito bem desenvolvida pelo roteiro e o ótimo elenco seja atrapalhada constantemente por Kawase nas escolhas narrativas de “Mães de Verdade”. Afinal, as constantes idas e vindas fragmentam demais a história aliada a uma montagem confusa. A terceira e última parte, por exemplo, é o ápice disso com subtramas inúteis (o que é toda a situação dos agiotas?), esticando o filme para desnecessários 2h20. 

Ainda que não atinja o brilho de trabalhos anteriores da própria Naomi Kawase nem o brilhantismo de ótimas produções japonesas de temáticas semelhantes recentes – “Pais e Filhos” e “Assunto de Família” – “Mães de Verdade” consegue debater assuntos profundos da sociedade japonesa e fazer o público sair emocionado do filme.  

Crítica | ‘O Dublê’ – cinema de piscadela funciona desta vez

David Leitch: sintoma do irritante filão contemporâneo do cinema de piscadela, espertinho, de piadinhas meta e afins. A novidade no seu caso são as doses nada homeopáticas de humor adolescente masculino. Dê uma olhada em sua filmografia e você entenderá do que falo:...

‘Rivais’: a partida debochada e sensual de Luca Guadagnino

Luca Guadagnino dá o recado nos primeiros segundos de “Rivais”: cada gota de suor, cada cicatriz, cada olhar e cada feixe de luz carregam bem mais do que aparentam. O que parece uma partida qualquer entre um dos melhores tenistas do mundo e outro que não consegue...

‘A Paixão Segundo G.H’: respeito excessivo a Clarice empalidece filme

Mesmo com a carreira consolidada na televisão – dirigiu séries e novelas - admiro a coragem de Luiz Fernando Carvalho em querer se desafiar como diretor de cinema ao adaptar obras literárias que são consideradas intransponíveis ou impossíveis de serem realizadas para...

‘La Chimera’: a Itália como lugar de impossibilidade e contradição

Alice Rohrwacher tem um cinema muito pontual. A diretora, oriunda do interior da Toscana, costuma nos transportar para esta Itália que parece carregar consigo: bucólica, rural, encantadora e mágica. Fez isso em “As Maravilhas”, “Feliz como Lázaro” e até mesmo nos...

‘Late Night With the Devil’: preso nas engrenagens do found footage

A mais recente adição ao filão do found footage é este "Late Night With the Devil". Claramente inspirado pelo clássico britânico do gênero, "Ghostwatch", o filme dos irmãos Cameron e Colin Cairnes, dupla australiana trabalhando no horror independente desde a última...

‘Rebel Moon – Parte 2’: desastre com assinatura de Zack Snyder

A pior coisa que pode acontecer com qualquer artista – e isso inclui diretores de cinema – é acreditar no próprio hype que criam ao seu redor – isso, claro, na minha opinião. Com o perdão da expressão, quando o artista começa a gostar do cheiro dos próprios peidos, aí...

‘Meu nome era Eileen’: atrizes brilham em filme que não decola

Enquanto assistia “Meu nome era Eileen”, tentava fazer várias conexões sobre o que o filme de William Oldroyd (“Lady Macbeth”) se tratava. Entre enigmas, suspense, desejo e obsessão, a verdade é que o grande trunfo da trama se concentra na dupla formada por Thomasin...

‘Love Lies Bleeding’: estilo A24 sacrifica boas premissas

Algo cheira mal em “Love Lies Bleeding” e é difícil articular o quê. Não é o cheiro das privadas entupidas que Lou (Kristen Stewart) precisa consertar, nem da atmosfera maciça de suor acre que toma conta da academia que gerencia. É, antes, o cheiro de um estúdio (e...

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...