Não dá nem 15 minutos e “Sem Remorso” já apresenta duas grandes sequências de ação: a primeira traz uma operação de guerra na Síria em que militares russos são mortos por um grupo de soldados norte-americanos liderados por John Clark (Michael B. Jordan); logo depois, é a vez destes militares dos EUA e da esposa do protagonista serem assassinados por supostos agentes da Rússia infiltrados no país. Tudo isso sem a menor pretensão de desenvolver personagens, aprofundar seus dramas ou contextos geopolíticos; é tiro, porrada e bomba. A partir daí, a fórmula do ‘exército do homem só’ entra em cena ao longo de seus 109 minutos. 

Nada do que Charles Bronson, Sylvester Stallone, Vin Diesel e Keanu Reeves com “John Wick” não tenham nos acostumados a ver ao longo de décadas. A proposta, entretanto, entra em choque com o material de origem, a obra do escritor Tom Clancy. Conhecido por suspenses de espionagem como “Perigo Real e Imediato” com Harrison Ford e “A Soma de Todos os Medos” com Ben Affleck, o autor, ainda que com muitas licenças poéticas, trabalha suas tramas em que o contexto geopolítico mundial, fundamentado no mundo real, faz parte fundamental da engrenagem da história andando em paralelo com o drama do seu protagonista. 

Aqui, entretanto, não há espaço para isso: mesmo contando com o ótimo roteirista Taylor Sheridan (indicado ao Oscar por “A Qualquer Custo” e pelos ótimos “Sicario” e “Terra Selvagem), “Sem Remorso” não permite qualquer outra coisa além das cenas de pancadaria e tiroteio. Pior que o subtexto revelado na metade final tinha tudo para ser dos mais interessantes pela complexidade e paralelos com a realidade atual, fugindo dos batidos inimigos históricos deste tipo de filme.  

Como se não bastasse, Sheridan em parceria com Will Staples, novato em longas, abusa dos mais conhecidos chavões do suspense – o protagonista ensandecido pela morte da esposa, uma parceira de todas as horas cheia de conselhos que não serão seguidos, um personagem misterioso pela dubiedade, um homem respeitado representando a racionalidade. Adivinhar quem é quem e o que vai acontecer não necessita de muito esforço, tornando tudo o que se vê na tela estéril, sem emoção e desinteressante, além de desperdiçar um bom elenco com Jamie Bell, Guy Pearce, Brett Gelman (coitado mal aparece) e Jodie Turner-Smith, além do próprio Jordan. 

SEGUE O FLUXO 

Caberia, então, ao diretor Stefano Sollima (“Sicario 2”) conseguir imprimir algum tipo de personalidade e fazer do limão uma limonada. A missão falha pela incapacidade do italiano em criar qualquer tipo de identidade visual ou narrativa para a produção. “Sem Remorso” não possui a sensação de urgência oferecida na série “24 Horas” ou nem se permite não levar a sério como vemos em “John Wick” ou nos longas de Bronson ou Arnold Schwarzenegger. Por mais que Michael B. Jordan tente dar um tom mais dramático e pesado, o drama nunca chega a convencer o espectador justamente pela falta de tempo em tela sempre visando (adivinha?) mais uma sequência de ação.  

Falando nelas, as cenas de batalhas, perseguição e tiroteio ficam no meio do caminho, afinal, Sollima não se mostra capaz de oferecer uma saída satisfatória entre o dilema de ter um herói do ‘exército do homem só’ paralelo a uma trama situada em um mundo real. Sendo assim, a violência surge clean demais para uma época de John Wick e Deadpool e os conflitos não fogem do já visto nos mais diversos filmes de guerra genéricos feitos em Hollywood desde o início da guerra contra o terrorismo na década 2000. Quando chega próximo de acertar na queda do avião, tudo transcorre rapidamente sem tempo para o público entrar em estado de tensão, especialmente, por também não ver nenhuma reação do tipo do outro lado da tela, criando um distanciamento total com a obra.

“Sem Remorso” conta a seu favor com o streaming para resgatá-lo de um possível esquecimento natural se fosse lançado nos áureos tempos das salas de cinema. Como tudo hoje precisa ser consumido ferozmente para ninguém ficar atrasado na pauta das redes sociais, muito mais gente viu o filme mais do que ele merecia, mas, com certeza, sem prestar tanta atenção no que acontecia. Afinal, nem precisa; é só seguir o fluxo das imagens e dos sons repletos de tiros e bombas.    

‘A Paixão Segundo G.H’: respeito excessivo a Clarice empalidece filme

Mesmo com a carreira consolidada na televisão – dirigiu séries e novelas - admiro a coragem de Luiz Fernando Carvalho em querer se desafiar como diretor de cinema ao adaptar obras literárias que são consideradas intransponíveis ou impossíveis de serem realizadas para...

‘La Chimera’: a Itália como lugar de impossibilidade e contradição

Alice Rohrwacher tem um cinema muito pontual. A diretora, oriunda do interior da Toscana, costuma nos transportar para esta Itália que parece carregar consigo: bucólica, rural, encantadora e mágica. Fez isso em “As Maravilhas”, “Feliz como Lázaro” e até mesmo nos...

‘Late Night With the Devil’: preso nas engrenagens do found footage

A mais recente adição ao filão do found footage é este "Late Night With the Devil". Claramente inspirado pelo clássico britânico do gênero, "Ghostwatch", o filme dos irmãos Cameron e Colin Cairnes, dupla australiana trabalhando no horror independente desde a última...

‘Rebel Moon – Parte 2’: desastre com assinatura de Zack Snyder

A pior coisa que pode acontecer com qualquer artista – e isso inclui diretores de cinema – é acreditar no próprio hype que criam ao seu redor – isso, claro, na minha opinião. Com o perdão da expressão, quando o artista começa a gostar do cheiro dos próprios peidos, aí...

‘Meu nome era Eileen’: atrizes brilham em filme que não decola

Enquanto assistia “Meu nome era Eileen”, tentava fazer várias conexões sobre o que o filme de William Oldroyd (“Lady Macbeth”) se tratava. Entre enigmas, suspense, desejo e obsessão, a verdade é que o grande trunfo da trama se concentra na dupla formada por Thomasin...

‘Love Lies Bleeding’: estilo A24 sacrifica boas premissas

Algo cheira mal em “Love Lies Bleeding” e é difícil articular o quê. Não é o cheiro das privadas entupidas que Lou (Kristen Stewart) precisa consertar, nem da atmosfera maciça de suor acre que toma conta da academia que gerencia. É, antes, o cheiro de um estúdio (e...

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...

‘Matador de Aluguel’: Jake Gyllenhaal salva filme do nocaute técnico

Para uma parte da cinefilia, os remakes são considerados o suprassumo do que existe de pior no mundo cinematográfico. Pessoalmente não sou contra e até compreendo que servem para os estúdios reduzirem os riscos financeiros. Por outro lado, eles deixam o capital...

‘Origin’: narrativa forte em contraste com conceitos acadêmicos

“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir...