Vários diretores, ao longo da história do cinema, fizeram filmes baseados em suas próprias vidas. Gente graúda, como François Truffaut (Os Incompreendidos), Federico Fellini (Amarcord) ou Ingmar Bergman (Fanny & Alexander), para citar só alguns dos mais marcantes. Mais recentemente, tivemos Roma (2018), de Alfonso Cuarón, revivendo essa tradição até comum dentro da sétima arte.

Belfast, de Kenneth Branagh, é o mais novo sócio desse clube. Nele, o diretor de adaptações aclamadas de William Shakespeare como Henrique V (1989) e Hamlet (1996), e de blockbusters como Thor (2011) e Assassinato no Expresso do Oriente (2017), revisita a própria infância ao dramatizar a vida de uma família na Belfast do final dos anos 1960, justamente quando a Irlanda era sacudida pelo início da pior fase dos confrontos entre católicos e protestantes, a época da história irlandesa conhecida como “The Troubles”.

Branagh aposta todas as fichas nessa experiência até se dando ao luxo de filmá-la em preto-e-branco, em um expressivo trabalho de fotografia de Haris Zambarloukos. O longa começa com planos da Belfast atual, em cores, que mostram uma cidade pujante e desenvolvida. Então, numa bela transição, somos transportados a 15 de agosto de 1969 e à ruazinha onde vive a família protestante a quem acompanharemos, cujo nome nem é mencionado no filme.  O Pai vive viajando, pois, trabalha na Inglaterra, a Mãe fica cuidando das crianças, o Vô e a Vó dão uma ajuda, os confrontos se iniciam, e vemos tudo pelos olhos do pequeno Buddy, o análogo do diretor, vivido pelo simpático ator mirim Jude Hill.

EQUILÍBRIO PRECIOSO

É um filme aparentemente simples, mas que depende de um equilíbrio delicado para funcionar: é obviamente nostálgico, mas, ao mesmo tempo, não deixa de enfocar a vida difícil e os problemas daquela sociedade e modo de vida em particular. Felizmente, Belfast consegue manter esse equilíbrio sem pender demais para um lado ou o outro, e essa é a sua maior qualidade.

Ajuda nisso também o elenco reunido por Branagh. Embora ninguém se destaque muito – afinal, os personagens são um tanto arquetípicos – os atores e atrizes ao menos defendem seus papéis com eficiência e sentimento. Jamie Dornan (Cinquenta Tons de Cinza) faz o Pai, Caitriona Balfe (Ford vs. Ferrari) a Mãe, e os avós são interpretados por Ciáran Hinds (Game of Thrones) e Dame Judi Dench (essa não precisa de referência), e a presença desses últimos, claro, nunca atrapalhou nenhuma produção. As cenas entre Hinds e Dench são cheias de nuances e o carinho entre os seus personagens é um dos destaques da obra.

SINCERIDADE FAZ A DIFERENÇA

“Belfast” também é filmado de forma inteligente. Como tudo é visto pelos olhos de Buddy, a câmera frequentemente está escondida, em ângulos até inusitados às vezes, a espionar o mundo dos adultos; ou mostra o Pai ou a Mãe em contra-plongée, de baixo para cima, como figuras grandiosas. Eles também são inegavelmente cheios de glamour.

O momento mais especial de Belfast, aliás, é um ato de heroísmo do Pai temperado por uma referência ao clássico western Matar ou Morrer (1952). Buddy é apaixonado por cinema, assim como Branagh devia ser, e está sempre assistindo a um western na TV. Em dois momentos do filme, o vemos no cinema e no teatro com a família, e tanto o filme na tela quanto a apresentação teatral aparecem coloridas. Não é a ideia mais original do mundo, mas é inegável que essas cenas em Belfast são bonitas e emotivas, de um jeito discreto e singelo.

E “singelo” é a palavra-chave da experiência aqui. No seu filme, Kenneth Branagh não tenta explicar o momento histórico, não tenta exagerar na dramaticidade e nem tenta fazer da sua obra algo mais do que ela é. Acima de tudo, Belfast é uma pequena homenagem a uma cidade, aos seus habitantes e a uma época, tudo conduzido ao som de belas canções de Van Morrison e por uma sensibilidade visual.

Truffaut, Bergman e Fellini, até mesmo Cuarón, quando revisitaram suas infâncias, construíram verdadeiros monumentos cinematográficos, enormes árvores. Belfast de Branagh se contenta em ser um pequeno bonsai, e assim está ótimo. É a sinceridade que conta, e ela faz muita diferença aqui.

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