Michel Guerrero possui uma longa carreira no teatro manauara, incluindo sua personagem mais famosa, Lady Park. Agora, ele revive sua paixão de infância pelo cinema para produzir seu primeiro curta-metragem como diretor, “Cine Carmen Miranda”.

Partindo de uma narrativa que mistura ficção e realidade, Michel transporta para as telas suas lembranças do cinema que existia na rua da sua casa. De propriedade de Joaquim Marinho, o Cine Carmen Miranda ficava localizado na esquina das ruas 24 de Maio e Joaquim Sarmento, no Centro de Manaus.

A obra, exibida pela primeira vez no fim do ano passado, possui 17 minutos de duração e está disponível no YouTube. Entretanto, como falou em entrevista para o Cine Set, Michel ainda pretende levá-la a festivais e para análise da crítica, chegando a mais pessoas. Confira abaixo a conversa:

Cine Set – Gostaria de perguntar primeiramente sobre sua relação com o Cine Carmem Miranda.

Michel Guerrero – Esse é um filme memória em relação a um período da minha infância no Centro de Manaus. Eu morava na Rua Joaquim Sarmento e frequentava vários cinemas da região desde os 7 anos, em 1985. Foi quando comecei a ver meus primeiros filmes sozinho sem ninguém me acompanhando. E o Cine Carmen Miranda inaugurou na rua da minha casa em 1986 e, a partir daí, começou, de fato, minha relação com esse cinema.

A sala durou seis anos, fechou em 1992, já exibindo filmes pornográficos. Eu assistia muitos filmes, anotava numa caderneta a lista das obras que via só no cinema. Teve épocas em que eu via 150 filmes por ano nos cinemas. Incrível isso, mas é real.

Na época do Carmem Miranda, eu era conhecido por quem trabalhava lá. Virei amigo do gerente, do porteiro, do lanterninha, do bilheteiro, o que, claro, me rendia passe livre. Cheguei a ficar responsável por trocar os cartazes toda quinta e sexta-feira quando ia alterar alguns títulos. Tinha até um banquinho alto para mim; eu pegava as tachinhas e grudava os cartazes com a ajuda da equipe. Tornou-se uma questão de honra na minha vida fazer isso.

Cine Set – É realmente impressionante assistir a 150 filmes no cinema em um ano.

Michel Guerrero – É bem impressionante mesmo porque naquela época era uma demanda de filmes muito grande. Por exemplo, tinha uns filmes que passavam só uma semana, outros quatro entendeu? “Ghost”, por exemplo, passou 28 semanas, só no Carmen Miranda foram 24 semanas, lotando todo dia de gente.

Cine Set – Como surgiu a ideia de realizar o filme?

Michel Guerrero – Sempre quis fazer cinema até por esta ligação desde a infância. Porém, o teatro me abraçou e o cinema acabou ficando de lado, salvas algumas experiências de oficinas de filmes alternativos daqui.

Certo dia, porém, falei: ‘quero começar a fazer cinema porque tenho potencial como ator, diretor, como uma pessoa que conhece, estuda, observa e tem correlações nessa questão’.  Cinema é uma outra linguagem, mas não tão distante por eu ser um cinéfilo. Adoro ver filmes, hábito que cultivo ainda hoje.

A ideia, então, veio em decorrência do lançamento do edital Aldir Blanc e aproveitei esta possibilidade. Escrevi o roteiro em uma manhã, mostrei para uns amigos que gostaram da ideia. Era um sonho maravilhoso contar um pouco da minha história com o Cine Carmen Miranda. Tive a sorte de ter sido aprovado mesmo sendo um iniciante no audiovisual.

Cine Carmen Miranda foi aberto no dia 20 de novembro de 1986 e recebeu 7 mil espectadores na primeira semana.

Cine Set – Qual era o diferencial e qual você acha que foi a maior marca do Cine Carmen Miranda?

Michel Guerrero – Era uma sala considerada pequena na época; o Chaplin, por exemplo, devia ter quase 400 lugares, enquanto o Carmen Miranda tinha 150. Era um cinema relativamente pequeno e com uma tela bem esticada para a lateral, sabe?

Então, quando vinha os filmes em Panavision, a tela ficava linda, perfeita. Apesar de pequeno, o Carmen Miranda era bem confortável, com ar-condicionado. Eu acredito que o diferencial era esse. Além disso, era bastante colorido com a fachada em amarelo, lembrando a própria Carmen.

Desde a inauguração, o Carmen Miranda tinha uma tradição: toda semana dos namorados voltava em cartaz o filme “Dio, come ti amo!”, de 1966, com a Gigliola Cinquetti. Esse filme, às vezes, ficava seis semanas em cartaz sempre com sessões lotadas mesmo sendo uma produção com mais de 20 anos de lançamento.

A seleção de filmes também era muito boa com a existência até de festivais. Se hoje temos o Varilux, na época, havia mostras de cinema francês que passavam no Carmen Miranda. E os filmes maiores, quando passavam três, quatro semanas no Chaplin, no Cantinflas e o público reduzia, eram transferidos para o Carmen Miranda.

Curioso que mesmo com o cinema indo muito bem entre 1988 e 1989 começaram a programar filmes pornográficos, especialmente, com a Cicciolina – “O Telefone vermelho”’, “A história de O”. E lotava até com casais. Muita gente ia assistir filme pornô como arte. Lembro porque tinham filas intermináveis, final de semana para ver um filme da Cicciolina e ninguém tinha vergonha disso. Vivíamos uma outra época.

Cine Set – Michel, como foi lidar com a questão da pandemia para gravar o filme?

Michel Guerrero – A pandemia foi um pouco grave para mim porque peguei Covid, mas não foi sério. Tive dor de cabeça por quase quatro dias, depois fui me recuperando, mas, não quis sair da cama. Fiquei meio que depressivo.

Acredito que esses projetos que consegui realizar não só trouxeram melhoria financeira para minha vida naquele momento como foram uma força propulsora para produzir, para movimentar a cabeça, o trabalho e uma cadeia de artistas em torno de mim.

Foi bem importante ter realizado não só o “Cine Carmen Miranda” como outros projetos que tive que fazer também. Em 2020, também enfrentei uma guerra, uma segunda guerra contra a H.pylori. Fiz um tratamento e não consegui tirar essa bactéria do meu corpo. Agora, neste ano, há dois meses, eu superei. No meu segundo tratamento, graças a Deus.

Cine Set – E você poderia falar um pouco sobre o processo de pesquisa para o filme? As pessoas entrevistadas, os locais de gravação…

Michel Guerrero – Para ajudar na pesquisa, chamei profissionais como o Arnaldo Barreto e Williams Ferry (dupla do premiado “Até que a Última Luz se Apague”). Os dois foram ver algumas locações, enquanto fui indicando outras até por esta memória e ligação que tenho com o Centro da cidade.

Tivemos que adaptar algumas coisas. Uma das ideias, por exemplo, era filmar em uma escola, porém, como as gravações aconteceram em três, quatro dias não deu para fazer na locação. Então, criamos um set que dava a entender que era uma sala de aula. Não cheguei a entrevistar pessoas marcantes da história do Cine Carmen Miranda porque a ideia era mesmo ser uma ficção com elementos dramatúrgicos, não exatamente fiéis à realidade, mas, próximos a ela.

Para o cinema em si, não tínhamos como reconstruir a fachada do Carmen Miranda, logo, encontramos no teatro Américo Álvarez (localizado na Avenida Ramos Ferreira) uma saída para fazer esta adaptação. Mandei fazer uma placa gigante com rosto da Carmen que simbolizava os cinemas do Centro na época.

Depois vieram os efeitos gráficos, visuais que fizeram esse néon do rosto da Carmen ser muito mais evidente, mais bonito na fotografia.

Cine Set – Quais são seus planos para o filme e para a sua carreira como cineasta? Pretende realizar novas produções?

Michel Guerrero – Bom, eu produzi, lancei o filme. Eu não inscrevi em festivais ainda, não corri atrás disso porque estava até mês passado na luta pela minha graduação de licenciatura em teatro. Vou colar grau agora e, com mais essa graduação, vou virar um professor de teatro de fato, além de ser jornalista.

Somente a partir de agora que realmente vou analisar os festivais de cinema, correr atrás, inscrevê-lo, pautar o filme de fato. E, na segunda-feira (13 de setembro), estarei no elenco de um novo filme que será lançado no Teatro Amazonas.

Lady Parker é a personagem mais conhecida da carreira de Michel Guerrero.

Cine Set – Pretende realizar novas obras?

Michel Guerrero – Se eu pretendo realizar novas obras? Claro que sim, estou supermotivado. Sei que não tive uma resposta do Carmem Miranda na questão de crítica, de festivais, porque eu ainda não o remeti. Mas tenho de quem assistiu ao lançamento e as pessoas que viram no YouTube: o que está chegando é muito positivo e motivador. Estou feliz de ter feito um primeiro filme com essa força em que as pessoas falam desse impacto para elas.

O “Cine Carmen Miranda” também traz algo diferente para a minha carreira, afinal, estou no teatro há 30 anos e, de repente, o filme está ali e você vê as pessoas chorando com ele. Eu não estou em cena ali; estou na produção, olhando o filme, mas você vê de outra forma agora. É um pouco isso.

Acho que eu vou seguir essa linha daquilo que é o meu entorno, daquilo que vivi, vivo e quero viver. O cinema que pretendo fazer deve partir das minhas experiências e dos meus olhares. O tema do meu próximo filme é sobre a terceira idade, mas, falando das senhoras nas calçadas e o que tem por trás dessas vidas. Estará focado no que cada coraçãozinho guarda pequenos segredos.

E, claro, que quero fazer comédia nos cinemas. Quem sabe uma aventura com a Lady Parker em uma história toda adaptada em Manaus? É um desejo que tenho.

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