Transformistas fazem parte da cultura brasileira – underground ou não – há décadas. A história registra a presença desses artistas em palcos pelo menos desde os anos de 1920, fora suas marcas pelos carnavais do país. E, dentro ou fora do mainstream, essa cultura queer floresce e sobrevive, entre a dureza do cotidiano, manifestações conservadoras presentes na sociedade e em eventos como o concurso anual Miss Amazonas Gay, que escolhe um artista para representar o estado nacionalmente. 

Os degraus para se chegar até essa competição são longos e costumam ser percorridos por transformistas como a personagem principal do documentário de curta-metragem Camylla Bruno”, dirigido por Henrique Saunier Michiles. Ao longo de 30 minutos, os espectadores poderão conferir todos os preparativos desse artista na busca pelo primeiro lugar do Miss Amazonas Gay 2020, realizado em novembro. 

Camylla Bruno” mistura documentário e videoarte, realidade e performance artística, metáforas e um olhar poético para apresentar a rotina de preparação de Bruno Maciel para o concurso. Entre maquiagens, penteados e figurinos únicos, o espectador vai conferir ainda o cotidiano de Bruno no restaurante administrado por ele, memórias como a dos segundos lugares que já levou nesse mesmo evento e os obstáculos enfrentados para se assumir como artista transformista gay para a família. Dessa maneira, Camylla Bruno mostra-se no filme como uma vencedora de conquistas artísticas e, sobretudo, humanas muito maiores. 

O documentário de curta-metragem “Camylla Bruno” foi contemplado com o Prêmio Manaus de Conexões Culturais 2020 – Lei Aldir Blanc. E o lançamento do filme, atualmente em fase de finalização, será realizado virtualmente na primeira quinzena de janeiro de 2021. O cronograma original sofreu reajustes por conta do avanço no número de casos de Covid-19 no estado, o que resultou na publicação do decreto governamental n° 43.234/20, que restringe o funcionamento de atividades não essenciais no Amazonas, no período de 26 de dezembro de 2020 a 10 de janeiro de 2021, como forma de conter o avanço da doença na região. 

Originalmente, Henrique planejava produzir um documentário sobre toda a edição 2020 do Miss Amazonas Gay. Mas, por questões de execução de cronograma, acabou optando pelo formato de curta-metragem e por concentrar os elementos que envolvem o concurso em apenas uma personagem – no caso, Camylla Bruno, que ele conheceu no início de novembro, durante a primeira reunião do evento. 

A admiração por essas expressões artísticas, sem deixar de lado os problemas que envolvem o universo LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), como a homofobia e suas violentas consequências – o Brasil lamentavelmente carrega o título de campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais –, estimularam Henrique a filmar “Camylla Bruno”. Abordar parte da vida de personagens que são exemplos positivos de pessoas que rompem com as barreiras de gênero e apresentá-los de forma respeitosa também estão entre as intenções do realizador. 

E engana-se quem imagina que o filme foi produzido para um público específico, já familiarizado com o universo queer. Com potencial para emplacar carreira em circuitos cinematográficos país afora, “Camylla Bruno” inclui um conteúdo humano capaz de inspirar positivamente qualquer pessoa, seja do universo LGBTQIA+ ou não. 

A protagonista 

Camylla Bruno foi criada pelo artista manauara Bruno Maciel, de 31 anos, inspirado por uma personagem de novela e por blocos de Carnaval. Por volta de 2007 e 2008 é que ele passou a se “montar” com o objetivo de participar de concursos para artistas transformistas e “viajar pelo mundo da moda, da maquiagem e dos figurinos”. 

Bruno revela que se sentiu orgulhoso quando foi convidado por Henrique Saunier para atuar no curta-metragem que leva o nome da sua criação artística. “Todo transformista e todo contexto que envolve a arte transformista simboliza e requer praticamente um filme”, observa. “Quando recebi o convite para participar do curta fiquei muito feliz em poder mostrar a realidade dos fatos porque um transformista, hoje em dia, exibe para a sociedade uma riqueza e um glamour muito grande e, muitas vezes, o reembolso disso tudo não chega nem a 1% do que ele gastou. E mostrar para o público como é que nos transformamos, as maquiagens, os vestidos e toda essa preparação, para mim, como transformista, foi muito gratificante”. 

Bruno comenta que, depois do término das filmagens, sentiu-se mais leve, mais humano e mais família. “Minha mãe participou das filmagens, e eu contava para ela sobre todas as gravações que eu fazia”, lembra. 

Como ser humano, o artista destaca que foi uma experiência interessante mostrar em “Camylla Bruno” que, por trás do glamour que transformistas exibem nos palcos, há uma pessoa como outra qualquer, que também sonha, que batalha, que acorda cedo, que vive uma realidade normal e sonha com um futuro melhor. “E como artista, para mim, foi um passo a mais para mostrar o desempenho e a determinação que existem em volta da arte transformista”, comemora. 

O realizador 

O diretor e roteirista Henrique Saunier Michiles (“No Controle” “Beto e Susi”), de 31 anos, é produtor audiovisual formado em 2017 pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Atualmente, trabalha como produtor de conteúdo no terceiro setor, na ONG Idesam, produzindo fotos e vídeos de cunho social e ambiental. Ao lado de diversos artistas LGBTQIA+, dirigiu e fotografou videoclipes, documentários, concertos ao vivo, videodança e diversos outros formatos audiovisuais. 

A cultura queer é uma constante nos trabalhos de Henrique Saunier Michiles, que se define como um realizador gay amazonense. Da equipe técnica até os nomes no elenco de seus filmes, ele não poupa em reunir artistas LGBTQIA+ para marcar presença em suas produções – que são influenciadas diretamente por temas desse universo que despertam seu interesse desde a infância, no município de Itacoatiara (AM), até as performances de drag queens e artistas transformistas em palcos de Manaus. 

O projeto do documentário “Camylla Bruno” foi inscrito no Edital Conexões Culturais 2020 e, logo que o diretor recebeu a confirmação de aprovação, começou a montar a equipe do filme – inteiramente formada por profissionais qualificados em suas respectivas áreas de atuação. “Nossa primeira filmagem aconteceu no dia 20 de novembro e a última cena foi rodada no último dia 13 de dezembro”. 

Entre as inspirações do diretor para a estética de “Camylla Bruno” estão obras cinematográficas como “Decameron” (1971, Pier Paolo Pasolini), “Paris is Burning” (1990, Jennie Livingston), “Bocage – O Triunfo do Amor” (1997, Djalma Limongi Batista) e “Dzi Croquettes” (2009, Raphael Alvarez e Tatiana Issa). 

Ficha técnica

Direção: Henrique Saunier Michiles
Roteiro: Henrique Saunier Michiles e Camylla Bruno
Direção de fotografia: Rodrigo Duarte
Design de som: Samy Lima
Direção de arte: Matheus Mota
Montagem e edição: Rafael Froner
Produção: Pedro Gonçalves
Assistente de arte: Rainer Canto
Maquiagem de efeitos especiais: Camila Viana
Trilha sonora original: Luiz Rocha
Design gráfico: Kenia Nattrodt 

com informações de assessoria

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