Vivemos numa época curiosa, mesmo… Chegou à Netflix a série de ficção-científica Expresso do Amanhã, baseada no sensacional filme de 2013 dirigido por Bong Joon-Ho, que por sua vez era baseada na HQ francesa Le Transperceneige, publicada nos anos 1980 pelos autores Jacques Lob, Benjamin Legrande e Jean-Marc Rochette. Atualmente, presume-se, a maior parte das pessoas está isolada (ou deveria estar), as estruturas sociais e econômicas do mundo estão abaladas, e não sabemos muito bem o que o futuro nos reserva. É a época perfeita para uma história apocalíptica sobre a humanidade confinada num espaço limitado.
Felizmente, a julgar pelo visto nos dois primeiros episódios, a versão para TV de Expresso do Amanhã parece promissora. O cenário é o mesmo do filme: Mudanças climáticas transformaram a Terra num deserto gelado, e sete anos depois, o que sobrou da raça humana está confinado num trem chamado “Snowpiercer”, ou o “Perfura-neve”, com milhares de vagões, e que prossegue em eterno movimento ao redor do globo. Os que moram na rabeira do trem são os lascados, com poucos recursos e amontoados em vagões escuros. Já mais para frente, existe uma terceira, segunda e uma primeira classe, e quanto mais perto da locomotiva do trem, mais os moradores vivem em luxo e opulência.
O cenário é o mesmo, mas a história em si é diferente. O filme mostrava uma revolução, com o pessoal dos últimos vagões se rebelando e prosseguindo em direção à locomotiva, liderados pelo personagem de Chris Evans. O primeiro episódio até parece que vai seguir pelo mesmo caminho, quando somos jogados numa tangente: Enquanto a revolta esquenta no fundo do trem, um dos “fundistas”, Layton (interpretado por Daveed Diggs), que era um detetive antes do fim do mundo, é chamado para investigar o assassinato de um cidadão da terceira classe. Ele se reporta à misteriosa sra. Cavill (Jennifer Connelly), uma personagem que, como podemos ver ao final do primeiro episódio, possui uma importância muito grande a bordo do trem, e que parece ser outra inovação em relação ao filme.
LUMINOSIDADE NO LUGAR DA CLAUSTROFOBIA
O temor dessa abordagem é transformar a série num tipo de programa investigativo, o que na TV americana conhecemos por procedural, aquele tipo de seriado de investigação tão presente na TV. Mas os produtores – dentre eles o próprio Bong Joon-Ho e seu amigo Park Chan-Wook, diretor de Oldboy (2003) – conseguem evitar isso, ao menos nesses dois primeiros episódios. Embora vejamos neles o começo da investigação de Layton, ainda percebemos o subtexto de sátira social e de luta de classes que energizava o filme de 2013. A mídia pode ter mudado, mas o equilíbrio da vida dentro do Snowpiercer ainda parece tão precário quanto no filme.
O que falta a estes episódios, no entanto, é um pouco mais daquela pegada claustrofóbica e tresloucada do filme. A série se mostra bem mais iluminada, e os espaços, mais amplos. Do ponto de vista técnico, a direção de arte e os efeitos visuais da série enchem os olhos – nestes dois episódios vemos cenários impressionantes, como o aquário, e a série já começa a expandir o mundo dentro do Snowpiercer com ambientes como um cabaré e o restaurante fino onde os ricos se deleitam.
Obviamente, a vitória de Bong Joon-Ho no Oscar este ano por Parasita (2019) – outro que também vai inspirar uma série de TV em breve – aumentou o perfil desta produção. Mas, sem dúvida, a série tem uma pegada diferente do filme. Talvez seja compreensível – afinal, uma coisa é aguentar quase horas claustrofóbicas e insanas num filme, outra é experimentar isso numa temporada inteira de TV. Mas resta ver se essa abordagem não acabará diluindo o impacto e a força da história no decorrer da temporada.
É sabido que a série teve uma produção tumultuada, com o episódio-piloto sendo regravado e troca de produtores – Scott Derrickson, diretor de Doutor Estranho (2016), dirigiu o episódio inicial e depois deixou a série ao se desentender com os produtores. James Hawes regravou o piloto, a versão que “valeu”, mas Derrickson continua listado como produtor-executivo. No entanto, ainda é cedo para dizer se esses fatores terão influência no resultado final. No geral, estes dois primeiros episódios de Expresso do Amanhã são bem produzidos, bem conduzidos e ambos terminam com ganchos que prometem trazer desenvolvimentos interessantes à história. Diggs está bem como o herói, a presença gelada de Connelly domina a tela sempre que aparece, e há boas participações de atores que prometem ser interessantes, especialmente Alison Wright, o mais próximo da reptiliana personagem de Tilda Swinton que a série oferece, ao menos neste início. Estes dois episódios merecem ser chamados de promissores… E, estranhamente, estão fazendo muito sentido em 2020.