“É estranho o que acontece no mundo sem as vozes das crianças”.
Existem sempre aqueles filmes que conforme o tempo passa se tornam melhores, ganhando sentidos mais complexos. “Filhos da Esperança”, dirigido por Alfonso Cuáron, já era memorável quando lançado em 2006, mas, revê-lo, em plena pandemia de Covid-19, o transforma em um filme alarmante e necessário.
A trama nos conduz para 2027. A pessoa mais jovem do mundo acabou de falecer e isso provoca uma onda de tensões e reações. Há uma crise humanitária sem precedentes: todas as nações colapsaram e, de alguma forma, a Inglaterra é o único território que mantém sua isonomia. Isso, porém, não é suficiente para evitar ataques terroristas e conspirações. Tudo isso é estabelecido nos primeiros 15 minutos e se acentua quando descobrimos que a idade da tal pessoa mais jovem do mundo é 18 anos. Logo se percebe que a infertilidade é um dos motivos que levaram à instabilidade mundial e que uma provável gravidez seria vista como um milagre.
Os caminhos narrativos da Esperança
Escrito por cinco roteiristas, entre elas o próprio Cuáron, “Filhos da Esperança” consegue mesclar vários gêneros cinematográficos de forma ambiciosa e perspicaz. Um de seus maiores trunfos, no entanto, é discutir temas emergentes sem apelar a discursos panfletários. A trama apresenta as conseqüências do aquecimento global, falta de água, imigração, crise política e esterilidade de maneira orgânica e crível.
Para contar essa história, Cuáron optou por uma composição – fotografia, design de produção, montagem e trilha sonora – que apresenta muitos momentos de ação, porém, a carga dramática e o peso político colocam os nossos pés no chão por soar incrivelmente verossímil. A narrativa é repleta de significados e é contada a partir de um ângulo em que cada passo leva a uma conseqüência inevitável.
Somos convidados a acompanhar a trajetória de Theo Faron (Clive Owen), um homem que esconde sua vulnerabilidade em uma capa de ceticismo e cinismo. Sua trajetória é o grande catalisador de “Filhos da Esperança” e sua peça mais emblemática: de um homem quebrado pelos traumas a um referencial de resiliência e esperança. Ele parte de um viciado para se transformar em um homem de princípios. Não é a toa que Julian (Juliane Moore) o escolhe para guiar e proteger Kee (Claire-Hope Ashitey); em um cenário em que o legado e a expectativa de vida da humanidade estão fadados ao fim, apenas alguém sem ilusões e perspectivas poderia auxiliar uma refugiada negra que gera o primeiro bebê em 18 anos.
Curiosamente, a cena em que finalmente descobrimos que Kee está grávida é bem orquestrada e alegórica. A escolha de apresentar a maior revelação do filme em um celeiro e a trajetória de Kee e Faron fazem um paralelo interessante e distópico com o menino Jesus: as perseguições por um governo autoritário, a fuga para outro país e as condições do nascimento.
Tais comparações também salientam uma discussão recorrente: se Jesus nascesse hoje ele seria um refugiado, um menino negro na favela ou um privilegiado? Sem aumentar o rol da polêmica, é importante perceber que parte dessa metáfora também decorre das sensações emitidas pela cena. A trilha sonora, por exemplo, empresta uma percepção de terror atrelada a santidade que se complementa com o uso das cores e do cenário.
O ambiente em 2027
Essa ambientação se deve, em grande parte, ao design de produção assinado por Jim Clay (“Simplesmente Amor”, “Um Grande Garoto”). Esse último elemento é preciso e carregado de detalhes que contam a história da trama sem a necessidade de explicações maiores como as notícias de jornal na casa de Jasper (Michael Caine), as grades no metrô, as propagandas massivas do governo em cada esquina e as pichações nas ruas caóticas de Londres. Tudo que vemos em tela nos ajuda a formar uma ideia do mundo distópico que aquelas pessoas vivem e a maneira como Clay apresenta isso é convincente e plausível. Não surpreende, por exemplo, que séries recentes tenham ecos de “Filhos da Esperança” para arquitetar seu futuro pós-apocalíptico, como “Years and Years”, “The Handmaid´s Tale” e até mesmo “Dark”.
É preciso salientar, no entanto, que um dos maiores destaques de “Filhos da Esperança” deve-se ao olhar de Emmanuel Lubezki – parceiro habitual de Cuáron desde “A Princesinha”. O diretor de fotografia mexicano levou quase todos os prêmios por seu trabalho, exceto o Oscar vencido pelo compatriota Guillermo Navarro, de “O Labirinto do Fauno. Embora os dois planos-sequências eletrizantes sejam muito exaltados, o que mais me prende e chama atenção é a capacidade que ele tem de nos colocar como um personagem na trama. Não estamos apenas os assistindo: vivenciámos toda essa desventura ao lado de Faron e Kee.
Manter a câmera sempre na mão nos deixa ainda mais envolvidos, afinal, a atmosfera documental traz junto a urgência e a inquietação que a história confere. E é neste ponto que o plano-sequência ganha um significado maior do que apenas o feito técnico primoroso: em ambos os cenários – tanto no carro quanto em Brexhill -, a aflição é tangível assim como a tensão e a violência.
Tudo isso contribui para que a releitura de “Filhos da Esperança” em tempos tão angustiantes funcione como um prenúncio. Cuáron conseguiu criar uma obra distópica realista e atemporal que traz à tona discussões muito importantes ainda hoje, curiosamente, sua abordagem permite que, além de ter um rigor técnico admirável, seja o drama com a jornada de Kee e Faron a experiência e a mensagem mais poderosa presente no longa. E afinal, como seria o mundo sem o som da voz de nossas crianças?