Desde que colocou um primeiro-ministro britânico de frente para um porco em uma situação nem um pouco agradável, Black Mirror cravou seu nome na cultura popular por trazer à tona histórias que jogavam seu olhar principalmente sobre as relações humanas e as influências (quase sempre) nefastas das tecnologias, fossem elas existentes ou não. Mesmo em seus momentos não tão bons assim, como The Waldo Moment, ainda assim havia algo a ser dito, como a reflexão sobre um sistema político e uma sociedade em frangalhos – alguém duvida que um Waldo realmente seria eleito nos dias de hoje? –, ou, mesmo nos momentos felizes de episódios como San Junipero, temas como as implicações de uma “vida após a morte” carregada em “super drives”.
Assim, a quinta temporada de Black Mirror chega novamente ao catálogo da Netflix quase como um retorno à forma dos primeiros episódios ainda dos tempos da TV britânica: se as duas temporadas anteriores foram mais recheadas e, consequentemente, também tiveram uma leva maior de tramas irregulares, esta opta por contar apenas três histórias, que levantam suas respectivas doses de questionamentos ao espectador. O resultado não chega a ser excelente, mas fica a sensação da tentativa do showrunner e roteirista Charlie Brooker em entregar tramas mais enxutas.
A falta de “firulas”, aliás, se revela também nas tecnologias que norteiam essas histórias: se Black Mirror já nos apresentou futuros distópicos e perturbadores e grandes aparatos revolucionários, aqui não há nada de novo nesse campo. Realidade virtual e inteligências artificiais já foram apresentadas antes pelo seriado, e um dos episódios se passa efetivamente em 2018, com redes sociais que lembram bem o Twitter e o Facebook nosso de cada dia.
Dito isso, vamos falar um pouco sobre cada episódio, e quem avisa amigo é: pode ser que haja doses homeopáticas de spoilers à frente.
“Striking Vipers”: “broderagem” tecnológica
De longe o melhor episódio da temporada, Striking Vipers é o que melhor balanceia as problemáticas que busca levantar e as implicações da tecnologia que apresenta nas relações dos personagens. De certo modo, é quase uma versão audiovisual do velho ditado de que se uma coisa existe, haverá uma versão pornô dela na internet: Danny (Anthony Mackie), casado, pai de um filho e tentando ter mais um com sua esposa Theo (Nicole Beharie), ganha de presente de seu velho amigo Karl (Yahya Abdul-Mateen II) um jogo de luta baseado em realidade virtual, em que ele e Karl encarnam personagens virtuais típicos de um game, com grandes músculos ou grandes seios, no caso das personagens femininas. Não leva muito tempo até que os dois resolvam experimentar o sexo através de seus respectivos avatares.
Embora o homoerotismo seja forte na relação entre Danny e Karl no decorrer do episódio, é interessante notar como a série apresenta seus protagonistas como homens que levam suas vidas “reais” com mulheres, mas que encontram o prazer um com o outro estritamente em suas versões virtuais e não na realidade – e, mesmo ali, mantêm uma relação ainda entre um homem e uma mulher. Os espectros da sexualidade dos personagens se tornam difusos e ganham nuances até fetichistas, levantando questionamentos sobre fidelidade, família e sobre a própria sensação física em si: até que ponto a realidade virtual é apenas uma pornografia mais sofisticada ou uma relação que emula perigosamente o real? O contraponto fica a cargo justamente de Theo, que gosta do flerte da vida real, de viver sua sexualidade e de ter seu corpo apreciado.
Entre cenários que emulam muito bem os games de luta a que já estamos acostumados e tomadas de uma cidade que aqui e ali conseguimos reconhecer como São Paulo, Striking Vipers pode apresentar um final feliz em sua superfície, mas que basta olhar um pouco mais para quebrar a cabeça sobre as possibilidades de novas dinâmicas familiares, sexuais e afetivas em um universo de realidade virtual.
“Smithereens” e o discurso dos males das redes sociais
“Vocês nem mesmo olham pra cima”, diz o motorista de aplicativo Chris (Andrew Scott) para o jovem millenial sequestrado por ele enquanto olhava o celular, em certo momento de Smithereens, o segundo episódio dessa temporada de Black Mirror. Chris tem um plano, e esse plano é conseguir falar com Billy Bauer, o grande CEO que comanda a rede social que dá nome ao episódio.
Embora o clima de tensão misturado com uma comédia de erros à la Irmãos Coen perpasse bem todo o episódio, ainda assim é meio desapontante ver que a discussão é encaminhada para o velho discurso de que as redes sociais são uma espécie de mal do século: pode não ser um debate completamente errado, mas é batido demais para uma série como Black Mirror apresentar uma visão quase rasa do assunto.
Talvez o mais interessante aqui seja justamente os bastidores da tal Smithereens da ficção: assim como as redes de Mark Zuckerberg detêm tantos dados sobre nós, os funcionários da empresa conseguem acesso aos dados de Chris sempre com mais rapidez e precisão que a própria polícia, lembrando-nos o quanto cedemos a empresas como essas na vida real ao simplesmente aceitarmos os termos de uso para ter um perfil no Facebook.
“Rachel, Jack and Ahsley Too”: o filme que poderia ser da Disney Channel
Dos mesmos criadores da lenda urbana de “Avril Lavigne morreu e foi substituída” (mentira), Rachel, Jack and Ashley Too poderia ser facilmente mais um filme da Disney Channel, embora em uma versão um pouco mais macabra do que o usual. A adolescente Rachel (Angourie Rice) enfrenta problemas de socialização em sua nova escola, mas encontra na boneca de inteligência artificial de sua ídola, a estrela pop Ashley O (Miley Cyrus), uma nova amiga para encorajá-la no dia-a-dia. Enquanto isso, a Ashley verdadeira se vê às voltas com um plano de sua tia e empresária para deixá-la inconsciente e se aproveitar de sua imagem.
Rachel, Jack and Ashley Too deve ser um dos episódios mais engraçados que Black Mirror já produziu: todo o ritmo e mesmo a trama parecem emprestados diretamente de um filme adolescente que poderia ser facilmente estrelado por Lindsay Lohan em seus dias de glória. Isso não é demérito nenhum: os tons de comédia são bem empregados, e mesmo que o discurso do pop como uma música sem alma seja levemente tingido aqui novamente, as possibilidades tecnológicas apresentadas pela trama para uma grande indústria musical sem escrúpulos são interessantes e perigosas ao mesmo tempo.
Embora aqui e ali seus personagens se tornem quase caricaturas – especialmente a vilã do episódio, encarnada da maneira mais maniqueísta e cínica possível –, esse episódio pode ser caracterizado com um adjetivo que raramente pode ser aplicado a Black Mirror: simplesmente divertido.