“Eu não sou um personagem”

Essa frase dita pela ex-presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, embala o que pode ser conferido em “Alvorada”, documentário de Anna Muylaert e Lô Politi. As diretoras adotam a estética observacional para nos fazer imergir no cotidiano dos últimos dias de Dilma no Palácio da Alvorada.

Fazemos um passeio pela residência presidencial e seus habitantes durante os dias entre a abertura do processo de impeachment (também conhecido como golpe) na Câmara dos Deputados e a confirmação de sua destituição. Ao optar por essa construção, três elementos se destacam: o som, o Alvorada e a própria Dilma.

O retrato de Dilma Rousseff

Diferentemente de produções semelhantes como “O Processo” (2018), “Excelentíssimos” (2018) e “Democracia em Vertigem” (2019), “Alvorada” é um passeio pela persona Dilma Rousseff. É a construção de seu retrato. Podemos ter um vislumbre de quem é essa senhora que foi torturada durante a ditadura, tornou-se a primeira mulher a ser chefe de estado no Brasil e passou por um injusto processo de impeachment. Se você se deixou levar pelas imagens midiáticas e os discursos confusos, o retrato que Muylart e Politi constroem dessa figura emblemática nos oferece uma perspectiva diferente.

Parte disso se deve a corporalidade de Rousseff e a câmera de Cesar Charlone (“Cidade de Deus”, “Dois Papas”) e Politi que busca detalhes de suas expressões a fim de perceber o que se passava na mente dela nesse período. Tal abordagem é curiosa e reflexiona numa fala da ex-presidenta: “eu não me deprimo”.

Observar seu andar curvado e, de certa forma, despojado aliado ao olhar firme e inexpressivo, atestam a sua colocação. Dilma tem um andar não altivo, mas obstinado. Perpassando a sensação de alguém seguro, que não deve nada a ninguém ao mesmo tempo em que emite percepções do tumulto de sua mente.

Um espaço para não chamar de lar

A direção toma esses aspectos para deixar nítido o isolamento que Dilma se encontrava no Palácio por meio do uso de planos mais abertos, da falta de tato para abrir uma cortina ou simplesmente de uma fala na qual ela esboça o quão distante está o Alvorada de ser um lar. O espaço também é responsável por indicar as mudanças graduais que levariam ao afastamento da presidenta. Estamos diante de um local que tem vida própria e se camufla de acordo com seus públicos e eventos, a mesma casa que abriga jornalistas, é capaz de receber mães, atletas e urubus.

A ligação constante com o espaço e as vidas que o habitam contribui para alicerçar a sensação de distanciamento e, em certa medida, de angústia que se instala no decorrer da trama. Esse sentimento parece emergir também das inúmeras figuras que rondam a presidência e piora à medida em que recordamos o subsolo do fundo do poço em que o país se encontra. Esse retrospecto pode ser notado ainda nos diálogos de Dilma que consegue abordar desde a história do Brasil ao “Paraiso Perdido” de John Milton.

As notas de Portaro

Quem também se destaca é a trilha sonora de Patricia Portaro (“Boca a Boca”, “Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e dizer parou”): por meio dela passeamos por vários gêneros e compreendemos de forma mais contundente as percepções que rondaram o Alvorada durante o processo.

Maior prova disso é o impacto que a trilha inicial – a qual remete aos épicos do cinema clássico -, ainda na tela preta, reverbera nos primeiros instantes da produção. O samba e a quebra de perspectivas por meio da trilha também são importantes para dar o tom retratista e sensível que a produção evoca.

“Alvorada” surge como um registro e memória diferenciados não só dos últimos dias de Dilma Rousseff liderando o país, mas de tempos diferentes e saudosos. Quando os créditos sobem, fica a lembrança da garra de Dilma e da cena derradeira: os urubus invadindo o espaço que ela não conseguia chamar de lar.

Crítica | ‘Transe’: o velho espetáculo da juventude progressista classe A

Pode ser tentador para o público, diante da repercussão memética negativa que o trailer de “Transe” recebeu, ir ao cinema com o intuito de chutar cachorro morto. Os que compram seus ingressos planejando tiradas mordazes para o final da sessão irão se decepcionar. Não...

Crítica | ‘Imaculada’: Sydney Sweeny sobra em terror indeciso

Na história do cinema, terror e religião sempre caminharam de mãos dadas por mais que isso pareça contraditório. O fato de termos a batalha do bem e do mal interligada pelo maior medo humano - a morte - permitiu que a religião com seus dogmas e valores fosse...

Crítica | ‘Abigail’: montanha-russa vampírica divertida e esquecível

Desde que chamaram a atenção com o divertido Casamento Sangrento em 2019, a dupla de diretores Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett vem sedimentando uma carreira cinematográfica que mescla o terror sangrento do slasher movie com a sátira social cômica para...

Crítica | ‘O Dublê’ – cinema de piscadela funciona desta vez

David Leitch: sintoma do irritante filão contemporâneo do cinema de piscadela, espertinho, de piadinhas meta e afins. A novidade no seu caso são as doses nada homeopáticas de humor adolescente masculino. Dê uma olhada em sua filmografia e você entenderá do que falo:...

‘Rivais’: a partida debochada e sensual de Luca Guadagnino

Luca Guadagnino dá o recado nos primeiros segundos de “Rivais”: cada gota de suor, cada cicatriz, cada olhar e cada feixe de luz carregam bem mais do que aparentam. O que parece uma partida qualquer entre um dos melhores tenistas do mundo e outro que não consegue...

‘A Paixão Segundo G.H’: respeito excessivo a Clarice empalidece filme

Mesmo com a carreira consolidada na televisão – dirigiu séries e novelas - admiro a coragem de Luiz Fernando Carvalho em querer se desafiar como diretor de cinema ao adaptar obras literárias que são consideradas intransponíveis ou impossíveis de serem realizadas para...

‘La Chimera’: a Itália como lugar de impossibilidade e contradição

Alice Rohrwacher tem um cinema muito pontual. A diretora, oriunda do interior da Toscana, costuma nos transportar para esta Itália que parece carregar consigo: bucólica, rural, encantadora e mágica. Fez isso em “As Maravilhas”, “Feliz como Lázaro” e até mesmo nos...

‘Late Night With the Devil’: preso nas engrenagens do found footage

A mais recente adição ao filão do found footage é este "Late Night With the Devil". Claramente inspirado pelo clássico britânico do gênero, "Ghostwatch", o filme dos irmãos Cameron e Colin Cairnes, dupla australiana trabalhando no horror independente desde a última...

‘Rebel Moon – Parte 2’: desastre com assinatura de Zack Snyder

A pior coisa que pode acontecer com qualquer artista – e isso inclui diretores de cinema – é acreditar no próprio hype que criam ao seu redor – isso, claro, na minha opinião. Com o perdão da expressão, quando o artista começa a gostar do cheiro dos próprios peidos, aí...

‘Meu nome era Eileen’: atrizes brilham em filme que não decola

Enquanto assistia “Meu nome era Eileen”, tentava fazer várias conexões sobre o que o filme de William Oldroyd (“Lady Macbeth”) se tratava. Entre enigmas, suspense, desejo e obsessão, a verdade é que o grande trunfo da trama se concentra na dupla formada por Thomasin...