São muito variantes as percepções que se tem de “A Ratoeira”, curta de Rômulo Sousa (“Personas” e “Vila Conde”) selecionado para o Festival Guarnicê 2020. Em seu terceiro projeto como diretor, ele entrega uma obra que experimenta várias construções cinematográficas e flerta com o calor e a cultura amazonense. A sensação que fica é de passar uma tarde típica nas zonas periféricas de Manaus.
O curta acompanha um jovem casal que vive junto até que o rapaz tem um sonho inquietante e resolve voltar a morar com os pais. Esse é o pontapé inicial para as discussões que Sousa transmite. Como fizera em “Vila Conde”, o roteiro é diretos e preciso quanto às informações que chegam ao espectador. Não sabemos nada sobre a vida dos personagens, a não ser o que está sendo visto no momento. E isso é importante também para compreendermos as relações presentes e como essas parecem alicerçadas.
A quente e sensorial Manaus
O primeiro ponto a apoiar as ligações em “A Ratoeira” é a paleta de cores e como ela evoca o calor e o mormaço de quem está habituado ao nosso clima úmido. Fazemos uma viagem com a personagem de Thayná Liartes dentro de um dos ônibus de Manaus. Vemos como a temperatura parece transbordar pela personagem, que, apesar de não falar nada, tem o rosto fechado, como se estivesse enfezada. Suas expressões são importantes para compreendermos o que se passa no filme. Mesmo calada, a personagem emite intensidade, raiva e angústia.
Neste ponto, é possível ver semelhanças entre o curta de Sousa e “Manaus Hot City”, produção independente de Rafael Ramos. Em ambos, o uso da luz e cores é fundamental para evocar sensações naturais de Manaus. Afinal, assim como a luz saturada escolhida por eles, a capital amazonense é quente, vívida, mas também possui sua parcela de alegria e de angústias. Rômulo Sousa, assim como Ramos, também assina a fotografia, montagem e roteiro da produção, o que lhe permite ter uma visão mais ampla e eficaz do que quer alcançar. No entanto, o ponto-chave de “A Ratoeira” são seus personagens e não a cidade.
Desde o início fica estabelecido a falta de harmonia e sincronia do casal principal. Há um cuidado em retratá-los em ambientes divergentes e contrapostos. Enquanto ela está encoberta pela luz solar, a iluminação que o cerca é mais gélida e transmite um distanciamento de tudo aquilo que ela poderia representar como a angústia, raiva e intensidade. No entanto, o roteiro utiliza o imaginário como mote para esboçar as preocupações dele e o consagra como um típico personagem masculino egoísta e medíocre.
A influência do imaginário
O imaginário é um dos aspectos fortes da cultura amazônida por meio das crenças, tradições e superstições. Sousa bebe dessa fonte para amarrar a sua trama por meio da simbologia onírica. Para muitas culturas, o sonho é um indicativo premonitório. Curiosamente, o diretor toma essa crença para construir o arco central de “A Ratoeira”. Contudo, o que chama atenção realmente é a sequência do sonho e o tom cômico que a narrativa lhe confere.
Isso, de certa forma, prejudica a condução da narrativa que não prepara o público para o seu ponto alto. Compreendo que a pandemia colaborou para que alguns momentos importantes não fossem feitos, como uma das cenas sugere, no entanto, Sousa mostrou ser um diretor habilidoso e criativo para sair dessa situação, pena que não foi o suficiente para criar o impacto necessário.
“A Ratoeira” é uma experiência curiosa para se conectar ao clima amazônida e emitir sensações do que é a vida nesse lado do país. Rômulo Sousa mostra seu crescimento e o quanto ainda pode oferecer para o cinema amazonense. Imergir em suas percepções cinematográficas tem sido até agora satisfatório. Aguardemos seus próximos passos.