Quem foi Eva? Segundo os escritos da Bíblia, foi a primeira mulher do Planeta Terra, nascida da costela de Adão, o primeiro homem. Enganada e seduzida pela serpente, come o fruto proibido e, como castigo para ambos, Deus enviou o caos à Terra.
Esta é uma breve síntese já esmiuçada diversas vezes acerca da etimologia da humanidade. “As Filhas de Eva”, a nova minissérie do Globoplay, lançada em março deste ano, nas entrelinhas, bebe dessa fonte.
Criada por Adriana Falcão, Jô Adbu, Martha Mendonça e Nelito Fernandes, “As Filhas de Eva” é uma das melhores produções da Globo dos últimos anos, ainda que escorregue em pontos cruciais. Mas vamos por partes.
A produção narra à história de três mulheres distintas: a milionária Stella (Renata Sorrah) que, em plena festa de Bodas de 50 anos de casamento, pede o divórcio. Sua filha, Lívia (Giovana Antonelli), psicóloga centrada, certinha, leva a vida perfeita, em um (aparente) casamento também perfeito com Kleber (Dan Stulbach), além de ser mãe de Dora (Débora Ozório), adolescente feminista. E Cléo (Vanessa Giácomo), como a mesma diz, um caos em pessoa. Diferente das duas, é pobre, desempregada, a vida ao avesso, mas o encontro entre as três fará toda a diferença.
AS DIFERENTES PRISÕES
Sob o comando de Leonardo Nogueira, “As Filhas de Eva” busca explicitar complexidades atuais na questão da mulher, do feminino, do seu protagonismo e a retomada do poder de suas próprias vidas. Eva, a original, dizem, foi a grande causadora do caos em que estamos inseridos por se deixar seduzir pela cobra.
Aqui, essa sedução é pela liberdade: Stella, Lívia e Cléo são mulheres distintas, que anseiam por uma liberdade que nem mesmo elas sabiam que existia. Sempre dominadas pela figura masculina, o trio começa a perceber a sua importância como mulher, como pessoa.
Stella passou 50 anos casada com o advogado corrupto Ademar (Cacá Amaral, excelente) e, quando dá um basta, percebe no buraco que foi estes anos todos com um cara que nem ao menos conhecia. Como ela diz em algum momento, foi mais “governanta” que esposa.
Lívia vê seu mundo desmoronar com a separação dos pais e seu casamento seguir a mesma direção quando compreende que o amor de sua vida, Kleber, é a personificação do macho escroto: infiel, invejoso e dominador.
Cléo, a única solteira e intensa, sempre se viu nas mãos dos homens e, em um romance em particular, se vê mais uma vez envolvida em um ciclo de dependência ao sexo oposto. E também presa nas encrencas que o irmão, Júlio Cesar (Erom Cordeiro) se mete.
Essa forte presença masculina nas vidas dessas mulheres se completam num interim que discursa acerca de relacionamento abusivo, feminismo, machismo, corrupção, o domínio dos altos poderes. Há uma mistura que, no fim, não há homogeneidade, parece que há coisas demais.
ELENCO BRILHA
Neste sentido, os 12 episódios se tornam longos, tudo poderia ser resolvido e enxugado em seis ou oito episódios. Outro grande problema é essa dependência em tornar tudo folhetinesco, novelão. Os profissionais, que são excelentes, ainda caem nesta cilada que pode comprometer demasiadamente a obra, pois se torna óbvio.
Ainda assim, o talento do elenco eleva o nível. Dan Stulbach, por exemplo, está em seu melhor papel: cínico, cafajeste, invejoso e com voz mansa, o próprio carisma que conquista em suas primeiras palavras. Vanessa Giácomo surpreende como a volúvel e suburbana Cléo, talvez seja o grande momento de sua carreira aqui.
Ligada no automático há anos e com aquelas caras e bocas de praxe, Antonelli nos entrega uma personagem contida, objetiva, um pouco complexada, mas que dá gosto em assistir em vê-la sair do obvio que tem entregado.
Mas os grandes nomes são Renata Sorrah e Cacá Amaral. A primeira dispensa comentários. Sua Stella entrega vulnerabilidade e força na mesma proporção, seu humor peculiar e a nova forma de encarar a vida é um encanto à parte. Desde “Senhora do Destino” (2004), quando interpretou a antológica Nazaré Tedesco ela merecia um personagem à alta, felizmente chegou. E Cacá, um ator não tão badalado, te conquista pela imponência vilanesca em tela.
Merecem destaques a presença marcante de Analu Prestes como Zezé, a bondosa e esquecida mãe de Cléo. O sedutor Jean Pierre Noher como Joaquim, interesse amoroso de Stella e Cecília Homem de Mello cativante na pele de Catarina.
AS PRÓPRIAS NARRATIVAS
A busca pela felicidade e autonomia de vida independe de estar com o outro e precisar de dele para se descobrir. O patriarcado tem seu peso na vida de todos, principalmente na mulher, que, de sexo frágil, nunca foi.
Stella, Lívia e Cléo, são mulheres que podem ser como muitas outras, privilegiadas ou não, donas de si ou não, independentes, letradas ou não, mas sempre condicionadas a uma figura masculina. É importante a ruptura dessa condição feminina.
Que todas as Evas que habitem nas mulheres mundo afora sejam seduzidas pela serpente da sua liberdade, de sua autonomia e busquem o caminho de suas próprias narrativas.