Duas coisas se destacam na minissérie “Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime”: o domínio patriarcal no Brasil e o estudo de personagem feito pela diretora Eliza Capai. A documentarista é responsável por produções que buscam investigar personagens femininas sem esquecer como as movimentações político-sociais as atingem e mobilizam. Foi o caso de “Tão Longe é Aqui” e “Espero Tua (Re)volta”, por exemplo.
Em sua primeira produção exclusiva para Netflix, essas características tão presentes em seu cinema levantam questionamentos e desmascaram o lado mais misógino do Brasil.
Somos convidados a conhecer Elize Matsunaga por meio da visão das pessoas que conviviam com ela e o marido (Marcos Matsunaga), daqueles que acompanharam o caso e por sua própria visão. Essa é a primeira e única entrevista concedida por ela, em cárcere desde 2012. Capai sabe aproveitar isso ao utilizar suas palavras como fio condutor narrativo, dessa forma humanizamos a mulher que matou e esquartejou o companheiro.
DE MENINA POBRE A “VIDA DE PRINCESA”
O roteiro assinado por Diana Golts utiliza a entrevista para oferecer novas camadas à personagem central. Longe de sensacionalismo e de artifícios imagéticos usados para limpar a imagem de certos entrevistados – como a coloração clara da roupa, blusas fechadas -; o perfil da protagonista é traçado desde o abuso sofrido em Chopinzinho (PR) até o desencanto da vida ao lado do herdeiro da Yoki.
“Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime” resgata elementos socioculturais que indicam o tempestuoso relacionamento entre o casal: a falta de confiança, o apreço de Marcos por garotas de programa e a vida excêntrica com direito a caçadas com animais empalhados, arsenal particular, dupla adega no apartamento e uma cobra de estimação.
Em vários momentos, porém, me deparei com o desejo de saber interpretar a linguagem corporal com precisão. Ainda que conheçamos outras nuances de sua história, o posicionamento corpóreo de Elize não induz a qualquer tipo de empatia. Sua voz calma e constante não traz o público para si como em algumas produções “true crimes”; pelo contrário, nos rememora o que ela foi capaz de fazer. No entanto, sua fala revela um perigo ainda maior no Brasil: o domínio patriarcal nas esferas judiciais.
SOB O JULGO PATRIARCAL
Em dado momento, alguém procura subverter a situação do Caso Matsunaga: e se fosse uma mulher rica a vítima e seu parceiro a tivesse assassinado, haveria tal repercussão? Essa indagação diz muito sobre a forma como o processo foi conduzido. Capai e Golts não omitem ou escondem a forma como o discurso misógino tomou corpo na situação tanto midiaticamente quanto no setor jurídico.
Costurando o depoimento de Elize com o de jornalistas, advogados de ambos os lados, especialistas, familiares, amigos e até líderes espirituais, fica nítido que a narrativa popularizada do caso foi feita sob o olhar masculino.
Desde a colocação dos amigos de Marcos de a responsabilizarem por ele se distanciar do convívio deles, passando pela descoberta midiática de seu passado na prostituição até a tese da acusação de que ela não teria forças para esquartejar um corpo sozinha; todos os olhares lhe são medidos de forma patriarcal e extremamente incômodos. A sensação que passa é de desconforto ao ver tantos clichês e preconceitos de gêneros serem postos como argumentos acusatórios e posicionamentos socialmente aceitos e comuns.
Ao longo dos quatro episódios, a minissérie se preocupa em compreender as motivações e intencionalidades do caso, tanto para Elize quanto para o sistema que a condenou. Conduzido elegantemente e sanando curiosidades, “Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime” finda levando a reflexões jurídico-sociais e do peso que é ser mulher no Brasil, independentemente de ser culpada ou não.