Às vezes, produtores de Hollywood têm cada ideia que nos fazem questionar os rumos da indústria. Tome, por exemplo, a série Ratched, que estreou na Netflix a sua primeira fornada de oito episódios – a segunda virá em 2021. É mais uma produção de Ryan Murphy, um dos grandes nomes da TV norte-americana atual, para a Fox Television, em parceria com a Netflix. A série é baseada na mais icônica enfermeira malvada da história da cultura pop, a famosa Mildred Ratched, aquela do livro Um Estranho no Ninho, do autor Ken Kesey, publicado em 1962. Um Estranho no Ninho virou filme em 1975, dirigido por Milos Forman. A versão para o cinema levou o Oscar de Melhor Filme e Louise Fletcher ganhou o Oscar de Melhor Atriz pelo papel da enfermeira. Graças ao filme, Ratched virou uma das maiores vilãs do cinema.

Na série, Mildred Ratched é vivida pela atriz favorita e habitual parceira de Ryan Murphy, Sarah Paulson. Na visão de Murphy e do criador Evan Romansky, Ratched chega à cidadezinha de Lucia, em 1947, depois de ter servido como enfermeira na guerra, e com sua inteligência e seu jeito manipulador, logo consegue um cargo no hospital psiquiátrico local. Ela tem um irmão que é assassino, e sofre com traumas do passado e uma homossexualidade reprimida. Mas ela tem também um lado… Bom? Ao longo dos episódios, vemos suas desventuras em meio às técnicas e tratamentos psiquiátricos da época, cada um mais arrepiante que o outro.

EXAGEROS POR TODOS OS CANTOS

Racthed, a série, é uma experiência essencialmente estética. O visual da série é a sua maior qualidade: figurinos, direção de arte e design de produção trabalham juntos para oferecer uma experiência visual suntuosa. As cores são fortes desde o início, o hospital psiquiátrico parece um hotel – com direito a um impressionante escritório azul para o administrador, o doutor Hanover (Jon Jon Briones) – e Paulson desfila pelos episódios com roupas que uma enfermeira norte-americana dos anos 1940 provavelmente não conseguiria comprar. O uso de trechos de trilhas sonoras de clássicos do suspense como Psicose (1960), Círculo do Medo (1962) e Um Corpo que Cai (1958) também acaba sendo um traço estilístico do seriado. E quando a coisa fica violenta ou estranha, a direção de fotografia amplia o clima mergulhando tudo em cores como o verde ou o vermelho. O mundo de Ratched é quase “almodovariano”, com umas pitadas de Suspiria (1977) de Dario Argento para as cenas mais fortes.

Tudo é intenso, quando não berrante, como geralmente é de praxe nas produções de Murphy, que sempre têm suas doses de exagero, sempre um pé no brega. E essa filosofia se estende às atuações do elenco. De fato, em todo o elenco, apenas Paulson e Cynthia Nixon como o seu interesse romântico se mostram discretas em suas composições. O resto dos atores, todos, têm vários momentos de overacting, de “devorar o cenário”, como se diz na expressão em inglês. Ao longo dos episódios, vemos intérpretes como Briones, Finn Wittrock, Sophie Okonedo e as veteranas Judy Davis, Amanda Plummer e Sharon Stone “ligados no 220V” em várias cenas. Às vezes, isso é divertido – Davis, por exemplo, geralmente rouba as cenas com sua personagem caricata, ela é sempre um prazer de se ver. Mas, num universo onde todo mundo se mostra over com frequência, fica difícil valorizar isso, ou os pequenos momentos, quando acontecem. A personagem de Stone, então, é uma coisa de outro mundo: uma milionária em busca de vingança, com um macaquinho de estimação (!) e uma atuação em que ela espana o cenário em quase todas as suas cenas. Só faltou a risada de bruxa…

Esse tom elevado dá à série um ar de novela: Paulson conduz o negócio nas costas, e ela está bem – ora, quando ela não esteve bem? Mas também se pode dizer que este não é um papel lá muito desafiador para ela. Trata-se de mais uma personagem onde ela atua muito para dentro e deixa seu rosto meio alienígena e ar gelado fazerem quase todo o trabalho.

A ERA DAS IPs

Incomoda também como os roteiristas tratam a protagonista da série: nos primeiros episódios, a enfermeira Ratched se mostra manipuladora, estranha e capaz até de cometer barbaridades. Mas, à medida que os episódios progridem, ela se torna praticamente uma anti-heroína, capaz de ajudar pacientes do hospital (mulheres) e de lutar contra figuras masculinas de poder, como o doutor Hanover e o prefeito da cidade, vivido por um apropriadamente seboso Vincent D’Onofrio. Era para dar mais dimensões à protagonista, mas, do jeito como é feito, só a faz parecer esquizofrênica. Ratched, a série, então comete o pecado capital de toda produção que se propõe a mostrar “a origem” de um vilão: o humaniza demais, faz dele quase um herói, e tira dele o apelo que o tornou interessante em primeiro lugar.

Ora, tanto no livro de Kesey quanto no filme de Forman, a enfermeira Ratched era a personificação do sistema, da autoridade, o completo oposto para o rebelde protagonista McMurphy. Fazer dela uma figura simpática e proto-feminista, até, é… bem, difícil pensar em algo mais distante das intenções iniciais daqueles que trabalharam com a personagem. Kesey passou o resto da vida falando mal de Hollywood e do filme de Forman, mesmo depois de toda a aclamação que este recebeu. Imagino o que o autor pensaria desta série, então…

Se os roteiristas querem contar uma história sobre uma anti-heroína nos Estados Unidos dos anos 1940, que se rebelava contra a repressão sexual da sociedade e as figuras masculinas poderosas… bem, deviam ter contado a história da enfermeira Joana da Silva, aí teriam liberdade para fazer o que quisessem, e não teriam que acorrentar a sua visão a algo já previamente estabelecido na consciência popular. Mas não é assim que as coisas funcionam em Hollywood, não é?  Vivemos na era das IPs, as “propriedades intelectuais”, e é por isso que Ratched existe. Ora, Todd Phillips queria contar uma história sobre um homem perturbado que enlouquece ainda mais em meio a uma sociedade desumana, seguindo a estética dos clássicos da Nova Hollywood dos anos 1970. Mas só conseguiu emplacar seu projeto junto a um grande estúdio quando resolveu chamar seu protagonista louco de “Coringa”, e ambientar a história na fictícia Gotham City. Porque ambos são IPs.  E hoje, é o que conta.

Em Ratched, a própria noção da IP parece contrária à história que os roteiristas e produtores querem contar. E se ignorarmos essa conexão por um tempo, o que sobra é uma novela exagerada que é bonita de se ver, mas é vazia e não tão divertida quanto poderia ser. Em ambos os aspectos, é uma decepção. Às vezes, é difícil mesmo entender Hollywood…

‘Ripley’: série faz adaptação mais fiel ao best-seller

Vez por outra, o cinema – ou agora, o streaming – retoma um fascínio pela maior criação da escritora norte-americana Patricia Highsmith (1921-1995), o psicopata sedutor Tom Ripley. A “Riplíada”, a série de cinco livros que a autora escreveu com o personagem, já...

‘O Problema dos 3 Corpos’: Netflix prova estar longe do nível HBO em série apressada

Independente de como você se sinta a respeito do final de Game of Thrones, uma coisa podemos dizer: a dupla de produtores/roteiristas David Benioff e D. B. Weiss merece respeito por ter conseguido transformar um trabalho claramente de amor - a adaptação da série...

‘True Detective: Terra Noturna’: a necessária reinvenção da série

Uma maldição paira sobre True Detective, a antologia de suspense policial da HBO: trata-se da praga da primeira temporada, aquela estrelada por Matthew McConaughey e Woody Harrelson, e criada pelo roteirista/produtor Nic Pizzolato. Os grandiosos oito episódios...

‘Avatar: O Último Mestre do Ar’: Netflix agrada apenas crianças

Enquanto assistia aos oito episódios da nova série de fantasia e aventura da Netflix, Avatar: O Último Mestre do Ar, me veio à mente algumas vezes a fala do personagem de Tim Robbins na comédia Na Roda da Fortuna (1994), dos irmãos Coen – aliás, um dos filmes menos...

‘Cangaço Novo’: Shakespeare e western se encontram no sertão

Particularmente, adoro o termo nordestern, que designa o gênero de filmes do cinema brasileiro ambientados no sertão nordestino, que fazem uso de características e tropos do western, o bom e velho faroeste norte-americano. De O Cangaceiro (1953) de Lima Barreto,...

‘Novela’: sátira joga bem e diverte com uma paixão nacional

Ah, as novelas! Se tem uma paixão incontestável no Brasil é as telenovelas que seguem firmes e fortes há 60 anos. Verdade seja dita, as tramas açucaradas, densas, tensas e polêmicas nos acompanham ao longo da vida. Toda e em qualquer passagem de nossa breve...

‘Gêmeas – Mórbida Semelhança’: muitos temas, pouco desenvolvimento

Para assistir “Gêmeas – Mórbida Semelhança” optei por compreender primeiro o terreno que estava adentrando. A série da Prime Vídeo lançada em abril é um remake do excelente “Gêmeos – Mórbida Semelhança” do genial David Cronenberg, como já dito aqui. O mundo mudou...

‘A Superfantástica História do Balão’: as dores e delícias da nostalgia

Não sou da época do Balão Mágico. Mesmo assim, toda a magia e pureza desse quarteto mais que fantástico permeou a infância da pessoa que vos escreve, nascida no final daquela década de 1980 marcada pelos seus excessos, cores vibrantes, uma alegria sem igual e muita...

Emmy 2023: Previsões Finais para as Indicações

De "Ted Lasso" a "Succession", Caio Pimenta aponta quais as séries e atores que podem ser indicados ao Emmy, principal prêmio da televisão nos EUA. https://open.spotify.com/episode/6NTjPL0ohuRVZVmQSsDNFU?si=F1CAmqrhQMiQKFHBPkw1FQ MINISSÉRIES Diferente de edições...

‘Os Outros’: por que a série da Globoplay assusta tanta gente? 

“Não vou assistir para não ter gatilhos”, “estou com medo de ver esta série”, “vai me dar pesadelos”. Foi comum encontrar frases como estas pelo Twitter em meio à repercussão causada por “Os Outros”. Basta ler a sinopse ou assistir aos primeiros minutos da produção da...