Depois de dois anos intensos com produção de curtas e longas-metragens frutos das políticas regionais pré-golpe e da Lei Aldir Blanc, o cinema amazonense encarou um 2022 mais contido. Isso, claro, não significa que tenha sido um ano perdido ou sem grandes momentos – como fica claro neste artigo -, porém, vimos menos filmes lançados e uma circulação em grandes festivais mais tímida do que em 2020 e 2021 quando, principalmente, “O Barco e o Rio” e “Manaus Hot City” fizeram história. 

Porém, 2022 era um ano para se olhar para o futuro mais do que nunca e os passos dados pelo cinema amazonense miraram nesta direção. Desde que acompanho a produção local ali por volta de 2007, nunca se discutiu tanto políticas públicas seja em âmbitos locais e estaduais a partir dos respectivos conselhos da classe seja na pressão em cima dos parlamentares para a aprovação da Lei Paulo Gustavo no Congresso Nacional seja no diálogo com os candidatos ao governo do Estado.  

Os eventos e espaços de debate apontaram para esta expectativa de novos tempos, mais prósperos para a cultura, a partir de 1º de janeiro de 2023 com a chegada de Lula à Presidência. 

FÓRUM FEMININO DO AUDIOVISUAL 

A ausência de filmes dirigidos por mulheres na quarta edição do Festival Olhar do Norte provocou importantes reflexões na cena local ao longo do evento. O resultado foi a criação do Fórum Feminino do Audiovisual do Amazonas.

A geração de oportunidades de trabalho, desenvolvimento de projetos em conjunto, criação de uma rede de apoio e a luta contra o machismo no audiovisual movem o grupo, atualmente, em funcionamento no Whatsapp. Nomes importantes do cinema amazonense como Flávia Abtibol, Naila Fernandes e Isabela Catão participam do Fórum.

O Cine Set realizou um podcast sobre a iniciativa na época da criação:

https://open.spotify.com/episode/6ZgtLCN9isSm1kTBTOsnhx?go=1&sp_cid=3bc4ec78376b0e2e2a891a58491d9e0c&utm_source=embed_player_p&utm_medium=desktop

KEILA E GRACIENE: PARA ALÉM DE MANAUS


“Alexandrina: Um Legado”
foi um dos filmes amazonenses que mais alçaram voo em 2022. As presenças no Cine Ceará, Curta Cinema, Mostra Goiânia Curtas e no Ji.hlava International Documentary Film Festival, na República Tcheca, mostram a potência do curta de 11 minutos com uma equipe composta, em sua maioria, de profissionais pretos e indígenas.
 

O filme faz do cinema um campo fértil de contestação, que ousa rasgar os registros do perverso e mentiroso passado, onde Alexandrina, mulher preta da Amazônia, que antes fora reduzida a objeto de estudo, esvaziada do seu vasto repertório de conhecimento e logo jogada ao limbo do suposto esquecimento; agora é o presente. 

O curta foi um dos pontos altos de Keila Sankofa neste ano enorme para a carreira dela: a diretora e artista visual foi uma das atrações do Rock in Rio através do projeto A NAVE, parceria do festival com a Natura, esteve na programação de Itinerância da 34a Bienal de São Paulo e exposição em conjunto com o Centro Cultural São Paulo – CCSP. 

Professora da Universidade Federal do Amazonas em Parintins e uma das idealizadoras do Festival de Cinema Focaliza Parintins, Graciene Siqueira foi a única amazonense selecionada para a fase final do 10º Festival de Roteiro Audiovisual de Porto Alegre (Frapa), maior evento do gênero na América Latina. No Rio Grande do Sul, ela apresentou o roteiro de “Icamiabas”,  

A obra traz a história de Aruana, uma indígena nascida na área urbana e que trabalha como geóloga no laboratório de uma mineradora do Distrito Industrial de Manaus. Ela recebe como tarefa descobrir a composição de uma rocha misteriosa na sua aldeia de origem localizada na região da Serra do Espelho da Lua, próximo à Nhamundá (382 km distante de Manaus).  

“Icamiabas” não levou Graciene apenas para o Frapa: ela também esteve no 12º Laboratório Novas Histórias, programa Sesc/Senac São Paulo de Desenvolvimento de Roteiros, realizado em Campos do Jordão. A principal atividade do evento era a consultoria com roteiristas experientes do mercado brasileiro.  

Quem sabe não veremos esta história em breve nas telas? 

O GRANDE ANO DE ADANILO 

Por “Noites Alienígenas”, Adanilo foi premiado no Festival Guarnicê e recebeu menção honrosa em Gramado.

Sabe aquele papo de ‘dobrar a aposta’? Adanilo fez isso em 2022. 

Afinal, como superar o ano anterior quando participou de “Marighella”, estreia na direção de Wagner Moura e maior bilheteria do cinema brasileiro, e a fez a excelente série “Segunda Chamada”, na TV Globo?  

Adanilo começou a missão quando a Mostra de Tiradentes selecionou “521 Anos | Siia Ara” para o evento mineiro logo em janeiro. Único representante do Amazonas no evento, o curta experimental de 5 minutos é uma viagem pessoal dele de um despertar da mentalidade colonial para abraçar as origens indígenas. 

O maior momento, porém, estava reservado para o trabalho em “Noites Alienígenas”. O drama acreano de Sérgio Carvalho dominou o Festival de Gramado com cinco Kikitos e mais uma menção honrosa para Adanilo, extremamente elogiado pela imprensa nacional. No tradicional Festival Guarnicê, o amazonense foi consagrado Melhor Ator. Como a vida da produção será bem longa, já se prepare para mais novas grandes notícias. 

Aqui por Manaus, Adanilo gravou a continuação de “Ricos de Amor”, continuação do sucesso da Netflix ao lado de Giovanna Lancelotti. Uma pena apenas que toda a consagração não pague boletos, como ele mesmo fez questão de dizer de forma transparente no Matapi e nas redes sociais.    

DE “PUTUMAYO” A “JIBOIAS”: 2022 DE LONGAS-METRAGENS 

Do jiu-jitsu à vida do ativista Roger Casement, o cinema amazonense ganhou novos longas-metragens durante 2022. Diretor conhecido por “Picolé do Aranha” e “A Incrivel História de Coti: o Rambo do São Jorge”, Anderson Mendes lançou “Pistolino e o Filme Que Não Acaba Nunca” no Cine Amazônia – Festival de Cinema Ambiental, em Rondônia, e no Amazônia Doc, no Pará. O documentário mostra a luta de Jair Rangel para finalizar o primeiro filme da carreira, que começou em 1998 e não tem data para terminar. 

Já Heraldo Daniel realizou sessão de gala no Teatro Amazonas para fazer a primeira exibição pública de “O Clã das Jiboias”. O documentário resgata a história do jiu-jitsu no Amazonas com entrevistas de nomes como Reyson Gracie, Arthur Virgílio Neto, Luís Carlos Valois, entre outros. 

Teve também “Sete Cores da Amazônia”, de Ana Lígia Pimentel. A produção baseada na HQ de Ademar Vieira e Tieê Santos acompanha Sarah, uma menina que vive na periferia de Manaus e entra em contato com a cultura indígena quando faz uma viagem ao interior para visitar a avó. 

Residindo em São Paulo, Aurélio Michiles lançou “Segredos do Putumayo” em circuito comercial neste ano. Com narração do indicado ao Oscar, Stephen Rea, a obra narra as investigações do ativista irlandês Roger Casement, então Cônsul Britânico no Brasil, sobre a escravização e assassinato de milhares de indígenas que eram forçados a trabalhar na coleta de borracha.  

Ainda há “Uyrá – A Retomada da Floresta” que apresenta Uýra Sodoma, ativista trans na Amazônia viajando pela região em uma jornada de autodescoberta usando a arte performática para ensinar aos jovens indígenas que eles são os guardiões das mensagens ancestrais da floresta. O documentário de Juliana Curi teve exibição especial na comunidade Nossa Senhora de Fátima 1, na Zona Leste de Manaus. 

Vale ainda citar “A Estratégia da Fome”: o média-metragem de Walter Fernandes Jr. com Isabela Catão de protagonista traz uma história nonsense com homenagens ao Cinema Novo e Marginal brasileiro. Já entre os curtas destaques para “Cem Pilum”, animação de Thiago Morais em parceria com o Museu Amazônico, da Ufam, ganhadora de Melhor Trilha Sonora no Guarnicê, e “Revoada”, dirigido por Rafael Ramos sobre a luta da equipe da Fiocruz contra Covid-19 e as fakes news na Tríplice Fronteira. 

CELEBRAÇÕES E DESPEDIDAS 

Nem bem o primeiro dia de 2022 havia começado e a notícia da morte de Severiano Kedassere, na véspera da virada do ano, pegou todos de surpresa. O ator indígena esteve no elenco de grande parte dos filmes da carreira de Sérgio Andrade – o curta “Cachoeira” e os longas-metragens “A Floresta de Jonathas”, “Antes o Tempo Não Acabava” “A Terra Negra dos Kawá”. O Teatro Amazonas foi palco de uma emocionante homenagem a ele durante a realização do Festival Olhar do Norte antes do último trabalho dele no cinema, o curta “Trovão Sem Chuva”. 

A reta final do ano não foi nada feliz para a cultura amazonense: em novembro, perdemos Ivens Lima, nome fundamental para a geração cineclubista dos anos 1960. A carreira dele começou em 1954 com a apresentação do programa “Cinemascope no Ar”, na Rádio Rio Mar, contando com o apoio de José Alberto Saraiva, Pe. Luís Ruas, Márcio Souza e José Gaspar. Ednelza Sahdo, a grande dama do teatro amazonense foi outra triste despedida. Ainda que tenha tido menos oportunidades no cinema que merecia pelo enorme talento, a atriz brilhou em “A Festa da Menina Morta”, de Matheus Nachtergaele. 

2022, entretanto, não foi marcado apenas por tristezas. O tradicional Cine Vídeo & Tarumã, cineclube da Universidade Federal do Amazonas, completou três décadas de existências. O ‘trintou’ contou com homenagem ao professor e criador da iniciativa, Antônio José Vale da Costa, o Tom Zé, e a exibição de curtas-metragens amazonenses com as presenças dos diretores seguido de um bate-papo com o público universitário. 

O resgate da história do cinema e dos movimentos ligados ao setor entre os anos 1960 e 1990 no Estado foi trazido pelo professor Gustavo Soranz. Ele é o autor do livro “Cinema no Amazonas 1960-1990″, lançado em setembro em Manaus, e no mês de novembro em Belém durante o Amazônia Doc.  

FIM DO CINEMARK MARCA CIRCUITO 

O complexo de oito salas da rede norte-americana Cinemark em Manaus chegou ao fim após mais de 20 anos. O fechamento aconteceu em janeiro, justo no momento em que o grande público corria para assistir “Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa”.  

A crise inflacionária com a disparada nos preços, especialmente, da energia, aluguel de espaços e produtos de alimentação levaram a um cenário insustentável para a continuidade de um cinema que vinha decaindo com o tempo, igual o próprio shopping do Studio 5. Pior para o público da zona sul de Manaus que ficou sem cinema na região – o mais próximo é o Centerplex no Shopping Grande Circular. 

O alento no circuito veio com a reabertura do complexo do Manauara Shopping. Após mais de uma década sob comando da Playarte, as 10 salas, agora, são do UCI. Porém, a variedade de filmes continua a mesma: muito blockbusters com sessões dubladas. 

Neste quesito, o Casarão de Ideias segue sendo um alento com a exibição de filmes fora do circuito e ênfase no cinema brasileiro. A iniciativa de uma sessão a céu aberto do excelente “Marte Um” foi o ponto alto em 2022 do centro cultural comandado por João Fernandes. 

ALERTAS ESTADUAIS E MUNICIPAIS 

Quem dera o problema da cultura no Amazonas ficasse apenas com Jair Messias Bolsonaro e seu (des)governo genocida. Cada uma a seu modo, as gestões do Estado e do município apresentaram questões preocupantes ao longo de 2022 – ambos, diga-se, apoiadores do candidato do PL nas eleições presidenciais. 

No âmbito estadual, o Conselho Estadual de Cultura apresentou claras dificuldades de estabelecer metodologias para avançar no Plano Estadual de Cultura, levando a discussões acaloradas acima do tom necessário em certos momentos. Para piorar, a falta de recursos para bancar a vinda e permanência em Manaus de conselheiros provenientes do interior do Estado para as reuniões inviabilizou a continuidade de alguns deles. 

Se o calendário eleitoral apertou os prazos para lançamentos de editais robustos, a estagnação da proposta mais do que necessária do retorno do curso de audiovisual na Universidade do Estado do Amazonas demonstra a falta de visão dos gestores públicos em compreender a força que o cinema pode trazer à geração de emprego, renda e imagem para a região, entre outros fatores. 

Para dar uma dimensão da situação em âmbito municipal, basta dizer que o atual edital Thiago de Mello com R$ 2 milhões é menor que o Conexões Culturais de 2018 (R$ 2,6 milhões) e 2019 (R$ 3 milhões). Mas, dá para piorar sim ao ver quantas vezes o resultado preliminar da análise documental foi publicado e republicado no Diário Oficial do Município. Do jeito que as coisas vão, melhor esperar o resultado sentado para 2023. 

Se já está complicado com um edital de valores baixos, imagina quando chegar a Paulo Gustavo…   

PERSPECTIVAS DE DIAS MELHORES 

E justamente as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2 são algumas das esperanças para que o futuro seja de grandes alegrias para o cinema amazonense. Nunca a cultura recebeu tanto dinheiro como está previsto somente com a lei em homenagem ao humorista: R$ 85,6 milhões para o Amazonas. O montante deve viabilizar a realização de longas e curtas-metragens, webséries, podcasts e festivais, além da manutenção de cineclubes e salas de exibição, estímulo as pesquisas sobre o audiovisual, entre muitas outras atividades.  

Os passos promissores do cinema amazonense, entretanto, vão além das duas leis. Neste ano, a Artrupe Produções Artísticas e a J O De Queiroga Neto Epp venceram a chamada pública BRDE/Fundo Setorial do Audiovisual para coprodução internacional. A expectativa é que, respectivamente, “Mudarei Como Um Animal da Floresta” e “Lupita na cidade de gente grande” comecem a ser rodados no ano que vem.  

Bernardo Abinader segue na luta para realizar a versão em longa de “O Barco e o Rio”. Baseado no curta que ganhou cinco Kikitos em Gramado em 2020, o projeto venceu duas categorias do BrLab: coprodução com a Vitrine Filmes, uma das maiores distribuidora independente do Brasil, e o Cesnik, Quintino & Salinas, consultoria jurídica para planejamento, estruturação e modelo de negócios. 

Para completar, os dois principais eventos de cinema do Amazonas encararam etapas decisivas: a Artrupe levou o Festival Olhar do Norte para o palco do centenário Teatro Amazonas em sua maior edição até então, enquanto o Matapi fechou parceria com o 2º Festival de Investimentos de Impacto e Negócios Sustentáveis da Amazônia (FIINSA). Tudo para um evento mais dinâmico em uma busca objetiva e direta para pensar de forma criativa os problemas e as soluções para o audiovisual no Amazonas e no Norte do Brasil. 

Caminhos de esperança para um futuro ainda maior.