Talvez a pergunta mais difícil ao terminar de assistir algum filme com, pelo menos, 30 anos de existência é se ele envelheceu bem ou mal. Qualquer obra de arte é realizada em um contexto cultural específico, cujas particularidades podem sobreviver ou não ao tempo. Evoluímos como sociedade, e a arte termina por refletir isso. Então, como avaliar um filme como “Manhattan”, de Woody Allen, dado a polêmica que existe ao seu redor?

Cada pessoa encontra sua forma de encarar essa questão. A resposta para ela não é uma fórmula que poderá ser copiada e aplicada para cada um que assiste a filmes ou consome diversos livros. A forma como vemos e dialogamos com as cenas que marcam nossas vidas podem muito facilmente encontrar reações adversas em uma conversa casual sobre o filme em questão no debate.

Vejamos “Manhattan” por exemplo: o longa de 1979 é considerado um clássico da filmografia norte-americana e visto como um dos melhores filmes na carreira de Allen. Suas lindas imagens de uma Nova York em preto e branco, ao som de uma trilha sonora que dá ênfase ao caráter majestoso desta cidade tão icônica e seus personagens neuróticos e problemáticos foram referências para uma geração de cineastas e cinéfilos. As falas ácidas dos personagens de Allen são um toque que amplia o escopo de suas analogias e ressalta sua graça através disso, seja relacionando um grupo de amigos a um filme de Federico Fellini ou dizendo que a autoestima de alguém só supera a de Franz Kafka.

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As pessoas que vemos projetadas na tela são arquétipos de uma sociedade moldada em torno de um padrão de vida muito diferente da realidade da maioria. Todos pertencem a uma classe artística e intelectual: Allen é o roteirista de televisão Isaac Davis, enquanto Diane Keaton faz a jornalista cultural Mary; já Michael Murphy é Yale, um professor universitário. Sob o ponto de vista de Isaac, acompanhamos este triângulo amoroso. Completando o time, temos Tracy (Mariel Hemingway), uma estudante terminando o ensino médio com 17 anos vivendo um relacionamento extraconjugal com o personagem de Woody Allen.

Mesmo em uma realidade bem fora do padrão da maioria dos mortais, os problemas dos personagens conseguem encontrar um nível de proximidade com o espectador. Ainda que tenham um emprego ou um status relativamente bem consolidado, todos asseiam por algo. São sujeitos movidos por um vazio difícil de preencher. Colocando nessas palavras parece ser algo mais profundo apresentado no filme, porém, para grande parte da projeção são relacionamentos humanos que parecem totalmente disfuncionais.

Os protagonistas de “Manhattan” tentam viver uma existência que consiga satisfazer suas expectativas sobre o que é certo, porém, existe uma força inconsciente que sempre os leva para o caminho contrário. O caso entre Yale e Mary é um exemplo: ambos tentam terminar por diversos motivos, mas, não conseguem.

MANIPULAÇÕES E NEUROSES

Partindo bastante de sua própria hipocrisia, Isaac é construído como um sujeito que parece ter sempre respostas para tudo. Seja com piadas ou indagações profundas, o personagem de Woody Allen sempre busca uma forma de se safar de suas próprias falhas.

Isso leva ao relacionamento, no mínimo, nocivo (para não dizer outras palavras) com Tracy. Ressaltando sempre que se trata de um caso passageiro, Isaac busca criar uma atmosfera de que está dando possibilidades para a garota sair daquela relação e construir algo com outras pessoas da mesma idade. Porém, na verdade, o que ele busca é apenas ter a consciência tranquila e não se sentir culpado por namorar uma pessoa muito mais nova que ele.

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A hipocrisia de Isaac também se faz presente em uma discussão com Yale ao considerar fraca a atitude do amigo em se perdoar muito fácil, sem parecer sofrer nenhum tipo de “autoflagelação moral” pelas coisas erradas que faz. Aliás, isso mostra outra faceta habitual de Woody Allen em “Manhattan”: tirar sarro dos diferentes tipos de neuroses que habitam um centro urbano como Nova York.

Yale, por exemplo, é o típico homem que ama a esposa, Emily (Anne Byrne Hoffman), mas não consegue deixar de lado uma chance para poder trai-la. É quase ridículo a forma como o personagem de Michael Murphy comenta estar triste entre sua divisão entre Emily e Mary, quase como se só falasse isso para dar a impressão de que sabe que é “errado”, mas que se aconteceu, aconteceu.

Já Mary salta aos olhos pela presença de tela de Diane Keaton e seu figurino bastante emblemático de blazers e calças, dando os detalhes necessários para compor a personagem Mary. Também mergulhada em diversos problemas pessoais e ligados a relacionamentos, ela resulta em uma figura bastante interessante, mas que parece não se sentir realizada pessoalmente ainda. Bastante sagaz, ela não mede esforços de dizer sua opinião, mesmo que não seja algo popular, entrando em diversos conflitos com Isaac, alguns divertidos, outros contemplativos.

RELAÇÕES ABUSIVAS E VISÃO FEMININA RETRÓGRADA

Com uma riqueza de personagens povoando uma cidade conhecida por seus diversos dramas e neuroses, “Manhattan” conquistou um público de críticos e cinéfilos através dos anos. Mesmo depois da polêmica entre Allen e Soon-Yi Previn, a fama do longa pareceu não cessar. Porém, em 2017, com o surgimento do movimento Times Up e do #MeToo, as coisas pareceram mudar.

A visão sobre os personagens representados neste filme começou a entrar em uma nova reavaliação. A começar pelo detalhe mais polêmico de “Manhattan”: o relacionamento de Tracy e Isaac. Talvez normal para a época de seu lançamento, hoje em dia, é difícil não questionar a natureza da relação dos dois.

Ainda que seja algo consentido (tanto legalmente, já que em Nova York, a idade mínima é 17 anos, tanto entre os personagens) a natureza tóxica do personagem de Allen é algo que só reforça a visão machista em criar um fetiche em adolescentes de 16-18 anos. Prejudica ainda mais “Manhattan” é que nenhum dos outros personagens mais velhos busca questionar a natureza da relação de Isaac e Tracy, o que passa a impressão de norma padrão da época.

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Neste jogo, o personagem de Woody Allen se aproveita do relacionamento até poder dispensar a adolescente para tentar algo com Mary. A parte final de “Manhattan” piora tudo ainda mais: Isaac corre (literalmente) a cidade atrás de Tracy, arrependido de tê-la deixado e pede uma segunda chance. O que poderia ser um sonoro não de valorização acaba resultando em uma porta deixada em aberta, algo incômodo demais visto que isso é a cabeça de Allen buscando a melhor solução possível para seu personagem.

O romance entre Mary e Yale também pode ser colocado como bastante questionável. Afinal, sobra para a personagem de Diane Keaton sofrer pelo fato de Yale desistir dela e, por isso, não se sentir completa. Isso dá espaço ao velhão e retrógrado chavão: ela não é amada, portanto não é feliz.

ENTRE ACERTOS E EQUÍVOCOS

“Manhattan” apresenta boa parte do que Woody Allen fez em muitos filmes ao explorar os problemas que afligem o âmago do ser humano. Nunca buscou criar situações que oferecessem uma discussão baseada em algo externo como conseguir algo, mas sim em respostas que pudessem transformar o interior de seus personagens. As histórias do novaiorquino quase nunca apresentam um final fechado e, sinceramente, boa parte de suas histórias surgem das trivialidades da vida. Conseguir fazer um filme com algum tipo de peso a partir disso já é algo louvável.

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Soma-se a isso o cuidado estético de “Manhattan” com a fotografia em preto e branco de Gordon Willis, dando destaque para a beleza da arquitetura de Nova York e dos apartamentos, ajudando assim a compor suas personagens. Conta também com a trilha sonora triunfal de George Gershwin, exaltando a ‘Big Apple’ e os picos dramáticos da história. E, por último, a estrutura narrativa de Allen, começando com um escritor buscando uma forma de contar uma história, e suas piadas e personagens carismáticos, ainda que problemáticos.

Esses são alguns dos pontos que tornam o filme de Woody Allen atraente. Porém, existe todo um lado que hoje em dia torna “Manhattan” disfuncional, principalmente, no que diz respeito a moral de seus personagens. Muito disso deve-se ao maniqueísmo de seu autor, cujas visões podem ter sido consideradas modernas à época, mas, hoje em dia, são resultado de uma visão ultrapassada sobre a própria natureza de relacionamentos e sobre as pessoas.

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