Bem-vindos, caros leitores, à nossa cobertura da nova série da HBO, Lovecraft Country. Pelas próximas semanas, vou comentar episódio a episódio da série e, claro, provavelmente algum spoiler deverá aparecer uma hora ou outra, então fica o aviso. E pelo que dá para se intuir por este primeiro episódio, parece que vai ser uma viagem emocionante.

Primeiro, uma contextualização, para quem talvez não saiba: quem diabos foi H. P. Lovecraft (1890-1937)? Foi um escritor norte-americano que, hoje em dia, é considerado um dos grandes pilares da literatura pulp de fantasia e terror. Embora não tenha alcançado sucesso em vida, Lovecraft escreveu histórias que sobreviveram ao tempo sobre o medo do desconhecido, loucura, cidades e criaturas mitológicas e horrores cósmicos tão grandes que, muitas vezes, não podiam nem ser descritos para o leitor. Ele influenciou grandes nomes como os escritores Neil Gaiman (“Deuses Americanos”), Clive Barker (“Hellraiser”), William S. Burroughs (“Naked Lunch”) e Stephen King (“O Iluminado”); o artista H. R. Giger (criador de “Alien”); e cineastas como John Carpenter (“O Enigma de Outro Mundo”) e Guillermo Del Toro (“A Forma da Água”).

Lovecraft era também um cara muito preconceituoso, especialmente antissemita e racista, e aí entra a série. “Lovecraft Country” é baseada no livro de Matt Ruff e desenvolvida pelos produtores Misha Green, J. J. Abrams (“Star Wars – Episódios IX”) e Jordan Peele (roteirista/diretor dos sucessos Corra! (2017) e Nós (2019))  e coloca protagonistas negros num contexto lovecraftiano, numa história que aborda, ao mesmo tempo, as tensões raciais dos Estados Unidos nos anos 1950 e ameaças sobrenaturais com um tom abertamente pulp. Aliás, só neste primeiro episódio são citadas, além das obras de Lovecraft, outros clássicos da fantasia como John Carter de Marte e O Senhor dos Anéis.

Essas citações surgem naturalmente na história graças à paixão do protagonista, Atticus (vivido por Jonathan Majors) pela literatura pulp, perfeitamente comunicada ao telespectador pela impressionante sequência de abertura do episódio. Ao receber notícias do pai desaparecido, Atticus parte numa viagem acompanhado de seu tio George (Courtney B. Vance) e da durona Letitia (Jurnee Smollett) em busca da misteriosa cidade de Ardham, situada em Lovecraft Country, onde estaria “a herança e o legado” da família, de acordo com o pai de Atticus. Para o rapaz, as histórias de Lovecraft têm chance de serem reais, e as descrições do autor de lugares e cidades podem fornecer dicas para a descoberta de um mundo estranho.

MONSTROS DA NOSSA REALIDADE

Mesmo sendo negro, Atticus ama Lovecraft – “as histórias são como as pessoas, não precisam ser perfeitas para que possamos amá-las”, diz a uma interlocutora num momento do episódio. Pena que, para descobrir esse lugar estranho, ele e seus companheiros de viagem – e não é com uma viagem que a maioria das histórias fantásticas começa? – precisam navegar antes pelos horrores da vida real. O horror de não querer andar na boleia de uma caminhonete dirigida por brancos, de ser perseguido por uma milícia de caipiras armados, de ter seu carro parado pela polícia. No ano em que vimos o caso George Floyd, essa cena adquire uma tensão poderosa. De fato, este primeiro episódio da série, intitulado “Pôr-do-Sol”, já é bastante assustador antes mesmo dos monstros lovecraftianos aparecerem.

O diretor do episódio, Yann Demange – do filme White Boy Rick (2018) – constrói habilmente a tensão desses momentos. A sequência com um xerife – o mais assustador monstro deste episódio – perseguindo os heróis até o limite do condado, com o sol se pondo numa corrida contra o tempo, é de deixar o espectador na ponta da cadeira, com uma montagem precisa e as atuações perfeitamente calibradas dos atores.

Realmente, quando a viagem começa, o episódio se torna realmente tenso e, ao mesmo tempo, incisivo no seu retrato do racismo sistêmico da época. Vemos os personagens percorrendo o meio-oeste americano e experimentando provocações e atribulações geradas do racismo numa sequência extremamente bem montada, enquanto ouvimos na trilha um discurso do escritor, dramaturgo e ativista James Baldwin (1924-1987) sobre a condição do negro nos EUA. É um momento arrepiante, no qual os elementos visuais se complementam ao discurso de maneira poderosa.

INÍCIO EMPOLGANTE

Este vibrante primeiro episódio alia momentos como esse com prazeres, digamos, mais básicos do gênero terror, como personagens lutando para fugir de monstros e sanguinolência explícita. Porém, mesmo neles, é emblemático o momento em que um policial vê um monstro se transformando ao seu lado, mas mantém sua arma apontada para o homem negro.

Ainda é cedo para dizer se essa mistura de alegoria com terror vai ser realmente bem explorada sem que um elemento roube a força do outro. E há mistérios que ficam de gancho para serem desenvolvidos depois: a ligação de Atticus para a Coréia, aquele pessoal branco e esquisito que aparece no final… Tomara que não sejam conduzidos no estilo J. J. Abrams. Mas é certo que este início de Lovecraft Country é muito promissor e empolgante. É difícil não sentir empolgação para ver o próximo. Vamos ver se os roteiristas e produtores vão conseguir a façanha de pegar as palavras e ideias de um racista e usá-las para tecer um forte comentário e uma história poderosa sobre o racismo nos EUA.

Uma coisa já posso dizer, no entanto: não faço ideia de para onde Lovecraft Country vai, mas já estou ansioso para ver o do próximo domingo.

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