Sigmund Freud, indiscutivelmente, foi um dos maiores pensadores da história ocidental, ao lado de Marx, Platão e Nietzsche. Médico e psiquiatra, ele levou as ciências naturais a outro patamar, tirando-a do pensamento cristão do século XIX na qual o ser humano era visto sob a ótica de um corpo animal, criado por Deus. Ao criar a sua ciência, a psicanálise, Freud mudou esta perspectiva: a alma e a sua natureza subjetiva – moldada a partir dos desejos e impulsos sexuais – ganhava uma importância fundamental nas ações da mente humana através do inconsciente. 

É curioso que a revolução intelectual praticada por ele, serviu largamente como subsídio para análises fílmicas de cineastas como Hitchcock, Fuller, Truffaut e De Palma na compreensão das ações dos seus personagens nos seus filmes, mas poucas vezes ele teve um grande protagonismo no cinema e na TV, muito em razão do próprio Freud ser avesso as biografias pessoais. Tanto que o pai da psicanálise só ganhou destaque principal no clássico Freud Além da Alma, de John Huston, e como coadjuvante em Um Método Perigoso, de David Cronenberg

Com o crescimento do mercado de biografias de personalidades históricas no formato fast-food, cedo ou tarde os produtores lembrariam do potencial de Freud para realizarem uma abordagem midiática. Coube os alemães serem mais espertos que os americanos e lançarem pela Netflix, Freud, série austríaca-alemã desenvolvida pelo trio Marvin Kren, Benjamin Hessler e Stefan Brunner, que acompanha um jovem Sigmund (Robert Finster) no início da sua carreira profissional, trabalhando na cura de pacientes histéricos em um hospital de Viena, ao mesmo tempo em que se vê envolvido em um estranho caso de homicídio investigado pelo inspetor Alfred Kiss (George Friedrich), que o leva a se aproximar da família húngara Szàpàry e da jovem médium Fleur Salomé (Ella Rumpf), que se torna a sua primeira paciente.

No fundo, não esperem uma série no sentido clássico das biografias tradicionais com o doutor atendendo pacientes enquanto discorre sobre a psicanálise e seus estudos. Freud é uma proposta arriscada, claramente interessada em montar um quebra-cabeças de entretenimento escapista, distante do lado sério e “cabeça” da teoria psicanalista, mergulhando o terapeuta mais famoso do mundo em um universo místico, a partir de uma trama detetivesca que reúne os elementos fantásticos da cultura pop para agradar, principalmente, o público jovem.

Freud Tudo Explica? Na série, infelizmente nem tudo

Se uma das obras mais conceituada de Freud é a Interpretação dos Sonhos, na série podemos dizer que os trio de realizadores Kren-Hessler-Bruner decidiram por conta própria, fazerem a sua própria interpretação de quem era o psicanalista. De biográfico mesmo, a série só utiliza os personagens reais e os conceitos da teoria psicanalítica para batizar os nomes do episódio e insinuar temáticas relacionadas a gênese do universo psicanalítico. 

Freud utiliza da sua liberdade artística para apresentar o mentor da psicanálise em uma versão dark, seguindo o padrão da tradicional jornada do herói com o jovem Freud inseguro, assustado e confuso descobrindo o funcionamento do inconsciente no comportamento humano. Se a série passa longe da fidelidade dos fatos reais, ela funciona como entretenimento? Ai que mora o principal problema dela: o quanto os roteiros dos oitos episódios pesam a mão no enredo fantasioso, atirando em diversas abordagens e gêneros cinematográficos, se perdendo neles no meio do caminho.

É um quebra-cabeça narrativo inchado, que insere a caça a um serial-killer, culto satânico, comportamentos histéricos, memórias reprimidas, desejos e vício de drogas, adicionando questões sociais como traumas de guerra, manobras políticas e misticismo. Além de atirar para todos os lados dentro da sua história, a série passeia sem muita sutileza por gêneros cinematográficos variados que vão do suspense ao horror sobrenatural e noir policial, sem dar uma identidade própria a série. Aqui os realizadores deixam de lado, o doutor da alma humana e fazem emergir da dramaturgia gótica, o Dr. Frankenstein ao transformar a série em um híbrido de Sherlock Holmes, Hannibal e Penny Dreadful, com cenas banhadas à sangue que flertam com o remake de Suspiria ou cenas de possessão que verberam os filmes de terror genéricos americanos baseados em O Exorcista.

É estranho que a construção da personalidade do próprio protagonista é menos explorada pelo texto quando comparada a Salomé e Kiss, que por sinal, ganham ganchos dramáticos mais interessantes e que se destacam frente aos conflitos dos seus personagens em relação ao nosso herói. É perceptível que os oito episódios de Freud sofrem em dar um bom ritmo a narrativa, em razão da história confusa e da jornada do herói errática. A investigação sobre o serial-killer é pouco empolgante no seu mistério e toda a subtrama política do conflito entre húngaros e austríacos centrada na família Szàpàry se revela superficial e simples na sua resolução. Se no cotidiano popular existe a frase “Freud explica”, a primeira temporada da série alemã seria uma sessão indigesta para o pai da psicanálise analisar. Mas como toda terapia, há bons insights para se aproveitar dela.

Um visual hipnótico eficaz

 

Mesmo com estes pesares textuais, você encontra algumas qualidades na série alemã. Quando deixa de lado o produto pop e procura se aventurar no limiar da discussão entre a ciência (representada pela histeria no âmbito da saúde mental) e o misticismo inserido na figura de Táltos (uma entidade da mitologia húngara que assume a mente de Fleur), a série cresce consideravelmente e não é à toa que os episódios 6 e 7 são os melhores desta temporada já que entrelaçam o trabalho de Freud com Fleur a partir das representações de sonhos e pesadelos que ajudam a definir os conceitos da mente humana pela ótica do horror. Em nenhum momento, a série toma partido, deixando que a ideia de algo religioso confronte o conceito de manipulação pelo inconsciente.

Neste aspecto Freud evita cair no clichê e entrega algo bastante original, apostando no experimentalismo para se sobressair visualmente, deixando de lado a narrativa clichê. Podemos dizer que se a hipnose não possui muita serventia dentro da série para o médico psicanalista (na vida real, o próprio descartou o seu uso quando avançou nos seus estudos), fora dela os seus realizadores fazem um ótimo truque “hipnótico” para criar uma reconstituição de época envolvente, de tom sombrio, feroz e místico, através de ótimas locações e figurinos.

A aura violenta eleva as cenas gráficas a um horror pontual, ao abstrair das metáforas visuais a exploração da psique humana e o melhor exemplo disso é quando Freud confronta a ideia do Complexo de Édipo, a teoria científica que ajudou a fundamentar a base psicanalítica, dentro do seu delírio.

Essa força visual se alinha a um elenco dedicado com destaque para Ella Rumpf (do francês canibal Raw) com uma atuação intensa, que passeia entre a figura reprimida da sua Fleur com a volúpia do seu alterego Táltos. Por sua vez, Robert Fisher encarna bem a determinação de Freud convencendo numa suposta reconstituição de como ele poderia ter sido na juventude, enquanto George Friedrich humaniza o seu truculento inspetor por meio de um jogo de olhares e sentimentos não verbais que ajudam a ilustrar os traumas de guerra e a pulsão agressiva da sua subjetividade.

Minhas considerações finais sobre a primeira temporada é que a série mesmo distante da linhagem mais pessoal do pai da psicanálise, serve para estimular a curiosidade do público e abrir novos caminhos para outras investigações, seja no cinema ou na TV, em relação aos conhecimentos inestimáveis produzidos por este pensador da subjetividade humana. Ainda que proporcione um gosto amargo pelo desperdício da estrutura visual pela sua narrativa desconjuntada, Freud deixa um gancho interessante para uma segunda temporada, que se os seus realizadores forem espertos, poderão diminuir o nível de conteúdo para deixá-la mais objetiva. Mesmo no campo da ficção, o legado da ciência psicanalítica sempre tem algo a oferecer.

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