Lançado em março de 2018, o edital das TVs Públicas estava próximo do anúncio dos projetos contemplados. A fase das propostas classificadas para a decisão de investimento já havia sido feita assim como os últimos recursos julgados. A expectativa do setor era que, até o fim do ano, o resultado saísse.
Porém, havia um Bolsonaro pelo caminho.
Em live realizada no Facebook no dia 15 de agosto, o atual presidente e conhecedor “profundo” do audiovisual criticou nominalmente quatro propostas com temática LGBT – “Afronte”, “Transversais”, “Religare queer” e “Sexo reverso”. Segundo o projeto de ditador, eram obras que não poderiam receber verba pública por atentarem contra os valores da família brasileira. Não demorou muito para Bolsonaro, através do ministro da Cidadania, Osmar Terra, decidir suspender o edital como um todo por um prazo de 180 dias, com possibilidade de extensão para mais 180 dias.
Desta forma, o governo Bolsonaro interrompeu o fluxo de dezenas de empresas ligadas ao audiovisual espalhadas Brasil afora. No Amazonas, 15 projetos das mais diversas temáticas de 13 produtoras diferentes estavam no aguardo do resultado. Com isso, menos investimento no audiovisual e menos geração de emprego e renda para profissionais da área.
GERAÇÃO DE EMPREGOS E PROJETOS LOCAIS ADIADOS
Sócio-proprietário da Cambará Filmes, Bruno Villela é um dos produtores locais à espera da decisão do governo. Ele disputa o edital com “No Rastro dos Bichos”. A série aborda animais ameaçados a partir do olhar de povos originários e comunidades tradicionais no Brasil.
Orçado em R$ 400 mil, “No Rastro dos Bichos”, caso seja aprovado no edital, deve gerar, pelo menos, 20 empregos diretos. “Acho difícil o projeto existir sem o edital porque é um muito caro. Já buscávamos, inclusive, algumas parcerias privadas para complementar os custos. Na verdade, é impossível produzir uma televisão diversificada sem essas políticas públicas. As emissoras não têm condições de arcar sozinhas com essas produções, sobretudo, as públicas. Depois do desmonte da TV Brasil, acabar com esse edital significa acabar com a TV pública brasileira”, afirma Villela.
Integrante do Conselho Municipal de Cultura de Manaus na cadeira do audiovisual entre 2017 e 2019, Liliane Maia está com dois projetos no edital: “#VamosNessa – Pelo Brasil” e “1001 Fantasmas”. A primeira trata sobre as manifestações culturais do país pelos olhos de crianças de 7 a 12 anos, a partir de um formato de telejornal descontruído com muita cor e diversão, enquanto o segundo é uma série infantil com atmosfera fantástica, a partir da adaptação do livro homônimo da escritora Heloisa Prieto. Temas como a falta de comunicação entre pais e filhos, perigos do acaso e relações de poder abusivas entre adultos e crianças serão tratados nos episódios.
Caso os dois projetos sejam aprovados, a estimativa é que sejam gerados 103 empregos diretos. “Pela forma que as coisas estão acontecendo, sinceramente, não tenho a menor ideia do que pode acontecer com o edital de TVs Públicas e com o próprio Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Espero que este governo entenda a importância dos projetos e das temáticas abordadas por cada proposta para compor a grade de programação destas emissoras. Um processo que passou por discussões em várias instâncias”, afirma Liliane.
Selecionado para o Festival de Berlim deste ano com o documentário “La Arrancada”, Aldemar Matias disputa o edital de TVs Públicas, através da produtora Formiga de Fogo Filmes, com o projeto de “Eu Quero Ser”. Em 13 capítulos, a proposta visa apresentar as aspirações profissionais de treze crianças, filhos de imigrantes, residentes em Manaus. O orçamento da produção gira em R$ 1 milhão e, segundo o diretor, é capaz de criar 25 empregos diretos em Manaus.
PASSO DECISIVO PARA O AUDIOVISUAL DO AMAZONAS
Aldemar Matias, aliás, esteve presente nos passos iniciais dos editais para as televisões públicas. Em 2014, ao lado do produtor acreano Clemilson Farias, ele integrou a primeira equipe do escritório da Região Norte da Linha de Produção Conteúdos Destinados às TVs Públicas (Prodav). A dupla viajou por todos os Estados da região, explicando a profissionais do setor sobre a importância do edital e dando orientações relacionadas a questões burocráticas.
Dentro de um processo de política pública de regionalização do audiovisual nacional, o primeiro edital para TVs Públicas selecionou oito projetos do Amazonas, entre eles, os programas “Amazônia Postal”, de Gustavo Soranz, “Meu Pequeno Mundo”, de Welder Alves Pedroso, e “Plantão da Imaginação”, de Christiane Garcia. Já o segundo edital, de 2015, teve outras seis produções aprovadas como, por exemplo, “O Boto”, da Artrupe Produções.
Fora do escritório regional Norte cedendo lugar ao produtor paulista Carlos Barbosa, Aldemar concorreu e venceu o segundo edital com “Palante”, série sobre a capacidade de mudança social trazida pela dança em cinco países da Amazônia Legal. “Com esse edital, profissionais que produziam conteúdo audiovisual de maneira informal abriram suas empresas e se inseriram na indústria. Foi uma revolução no mercado de todas as regiões do Brasil. Eu mesmo só abri a minha produtora (Formiga de Fogo Filmes) devido a esse cenário favorável à regionalização”, explica.
Liliane Maia e Bruno Vilela também tiveram projetos selecionados, respectivamente, “Blog da Mari” (em parceria com a 602 Filmes e com 38 empregos diretos gerados) e “Índio Presente” (40 pessoas empregadas diretamente). “Foi a primeira linha de financiamento regionalizada, justamente amparada na ideia de fomentar uma televisão pública. Algumas produtoras surgiram, como a nossa, coletivos se formalizaram, outras produtoras antigas restritas à publicidade, passaram a atuar no cinema e televisão. O Prodav 2014, mesmo não sendo um edital pra cinema, foi um dos maiores responsáveis por inaugurar um novo ciclo do cinema amazonense, que se diversificou e profissionalizou-se. Séries aprovadas no Prodav ajudaram a formar profissionais, que tiveram sua inserção no mercado por meio delas”, declarou Villela.
PERDA DE ESPAÇO RARO NO MERCADO NACIONAL
A política pública de regionalização do cinema nacional teve um impacto forte no audiovisual nesta década. Os editais de Baixo Orçamento do Ministério da Cultura, por exemplo, permitiram a Sérgio Andrade produzir três longas-metragens no Amazonas com boa parte de equipe local (“A Floresta de Jonathas”, “Antes o Tempo Não Acabava” e “A Terra Negra dos Kawa”). Em breve, graças ao mesmo tipo de fomento, o primeiro longa de Christiane Garcia, “Enquanto o Céu Não me Espera” deverá chegar aos cinemas nacionais.
Para Liliane Maia, os editais para TVs Públicas fortaleceram este processo. “O Prodav e suas políticas de regionalização permitiram movimentar a cadeia produtiva do audiovisual no Amazonas e fortalecer as narrativas regionais”, disse.
Com isso, mais gente pode ter acesso às obras locais. Neste momento, por exemplo, a série aprovada no segundo edital, “Amazônia Legal” está sendo exibida na TV Brasil, às quintas-feiras, sempre a 0h (hora de Brasília). Bruno Vilela contabiliza na página de “Índio Presente” no Facebook mais de 15 mil seguidores e exibições nas TVs Cultura do Amazonas e São Paulo, além de já ter sido comercializada com o Canal Futura.
Atualmente no canal oito da NET digital, a TV Ufam possui grande parte de sua programação com atrações provenientes do Prodav, incluindo, as amazonenses “Amazônia Legal” e “Palante”, além da curitibana “Contracapa”, a carioca “Baile de Máscaras” e o documentário goiano “Resplendor”, entre outras.
Conheça os 15 projetos do Amazonas no edital das TV´s Públicas 2018:
“1001 Fantasmas” – Proponente: L Monteiro Maia
“Amaré e os Gaviões” – Proponente: Flávia L.B Abtibol Criações
“Amazônidas” – Proponente: 602 Filmes
“Cartas” – Proponente: Amazônia Vídeo Produções LTDA.
“Céu” – Proponente: Artrupe Produções Artísticas
“Ciência Flutuante” – Proponente: Flávia L.B Abtibol Criações
“Cururu Teitei e os Eletrobabies” – Proponente: Paulo César Freire Produções Cinematográficas
“Eu Quero Ser” – Proponente: Formigo de Fogo Filmes
“Fake News” – Proponente: Amazônia Vídeo Produções LTDA
“Flor do Asfalto” – Proponente: Maya Filmes
“Igual a Mim, Igual a Ti” – Proponente: Jean Robert César
“Lupita no Planeta de Gente Grande – 2a Temporada’ – Proponente: J.O de Queiroga Neto
“No Rastro dos Bichos” – Proponente: Cambará Filmes
“Sabores da Floresta” – Proponente: Estúdio Castanheiras
“#VamosNessa – Pelo Brasil” – Proponente: L Monteiro Maia