Parte do que será colocado neste texto também foi abordado pelo João Fernandes, diretor-proprietário do Casarão de Ideias, em sua coluna no jornal A Crítica deste domingo (27) (clique aqui para ler).
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Dirigido por Bernardo Ale Abinader, “O Barco e o Rio” escreveu uma das mais belas páginas do cinema amazonense ao conquistar 5 Kikitos no Festival de Gramado 2020, entre eles, Melhor Curta-Metragem Nacional, Direção e Júri Popular. O resultado, entretanto, não faz parte de um acaso: a vitória está inserida no que pode ser encarado como o terceiro grande momento do cinema amazonense.
O saudoso professor da Ufam, Narciso Lobo, no livro “A Tônica da Descontinuidade: Cinema e Política em Manaus na Década de 1960”, apontava que o cinema amazonense tivera duas importantes fases: a primeira com Silvino Santos nas décadas de 1920 e 1930, e nos anos 1960 com a geração cineclubista de Cosme Alves Netto, Roberto Kahané, Joaquim Marinho, José Gaspar, entre outros. Com a devida vênia, tomo licença para apontar que vivemos SIM este terceiro momento, mais precisamente, iniciado em 2001 com a criação da Amazon Film Comission – o aprofundamento disso farei, em breve, no meu futuro mestrado.
Neste período, vimos Sérgio Andrade lançar “Antes o Tempo Não Acabava” dentro da Mostra Panorama do Festival de Berlim 2016, Aldemar Matias conquistar o segundo prêmio do júri no tradicional Festival de San Sebástian com “El Enemigo”, “Maria”, de Elen Linth, “Aquela Estrada”, de Rafael Ramos, e “A Estranha Velha que Enforcava Cachorros”, de Thiago Morais, acumularem participações e prêmios em eventos nacionais e internacionais. Isso para ficar somente em reconhecimento fora do âmbito local.
Tal qual o cinema brasileiro, porém, a produção amazonense convive com a descontinuidade. Se Silvino viu secar a fonte do financiamento do comendador J.G Araújo e a censura, repressão política aliada à decadência econômica da região prejudicou a geração cineclubista, não seria a atual que passaria incólume a esta maldição. E é justamente aqui o risco para que noites como de 26 de setembro de 2020 possam não mais acontecer.
AUSÊNCIA NA FORMAÇÃO ACADÊMICA
O Amazonas Film Festival e toda a sua pompa imponente acaba sempre sendo o exemplo mais lembrado, porém, a descontinuidade do curso técnico em audiovisual da Universidade do Estado do Amazonas após duas turmas se mostra uma perda ainda maior. Afinal, Bernardo Abinader e a premiada diretora de fotografia de “O Barco e o Rio”, Valentina Ricardo, são egressos do curso.
Atualmente, em Manaus, quem deseja aprender audiovisual dispõe apenas de poucos cursos livres – Museu Amazônico, Artrupe, Casarão de Ideias, Centro Popular do Audiovisual e o próprio Cine Set são os que mais realizam atividades do tipo. Infelizmente, o melhor caminho para um aprendizado mais acadêmico e de longo prazo ainda é o aeroporto, algo inviável para uma parte dos interessados em seguir na profissão.
Daí, fica a pergunta: quantas portas foram fechadas para interessados em fazer carreira no audiovisual e no cinema? Quantos gargalos da nossa produção poderiam ter tido soluções locais? Quais parcerias deixaram de ser feitas? Em quais pontos nossa produção teria avançado ainda mais?
Retomar a formação acadêmica é peça-chave para garantir uma continuidade sustentada e a evolução do audiovisual amazonense.
EDITAIS INCERTOS
Na década 2010, o Amazonas registrou a produção de três longas-metragens realizados por equipes locais. Dirigidos por Sérgio Andrade, “A Floresta de Jonathas”, “Antes o Tempo Não Acabava” e “A Terra Negra dos Kawa” foram todos financiados pelo edital de Baixo Orçamento do antigo Ministério da Cultura, algo até então inédito para o Estado e impensável décadas atrás. Os filmes circularam o mundo levando a cultura, rostos, sotaques e temáticas locais.
Isso aconteceu graças a uma política pública de regionalização dos editais do setor do audiovisual, permitindo que Estados que quase nunca conseguiam competir com a estrutura disponível no Rio de Janeiro e São Paulo, também pudessem realizar as suas obras graças a estes investimentos. Desta maneira, pudemos ver 14 séries amazonenses produzidas para as televisões públicas e arranjos regionais como o Prêmio Manaus de Audiovisual, parceria entre a Manauscult e o Fundo Setorial do Audiovisual, que possibilitou o financiamento de “O Barco e o Rio”.
O panorama, entretanto, mudou radicalmente com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República e uma não-política para o audiovisual brasileiro. Para piorar, a pandemia da COVID-19 agrava ainda mais a crise econômica do país e encarece o setor pelos cuidados sanitários necessários para as gravações. Os editais provenientes da Lei Aldir Blanc podem até dar um fôlego temporário assim como os projetos em pós-produção, como “Enquanto o Céu Não Me Espera”, de Cristiane Garcia, mas, as incertezas continuam fortes.
Para quem entende a importância do audiovisual tanto como uma atividade cultural fundamental como uma cadeia econômica geradora de empregos e receitas, faz-se fundamental escolher representantes municipais, estaduais e federais comprometidos com a Cultura e o fortalecimento dela.
Caso contrário, a descontinuidade é logo ali.
GIRL POWER MADE IN AMAZONAS
Das características mais marcantes desta terceira fase do cinema amazonense, a presença feminina aparece como um ponto fundamental de representatividade. Nunca tantas mulheres conseguiram espaço no audiovisual local como atualmente. E “O Barco e o Rio” representa isso à perfeição.
Na frente das telas, duas mulheres protagonizam o filme do Amazonas ganhador de 5 Kikitos no Festival de Gramado. Isabela Catão constrói uma das mais belas carreiras no audiovisual local com desempenhos arrasadores em obras como “A Goteira” e no futuro “Enterrado no Quintal”. Por muito pouco, não levou o prêmio de Melhor Atriz por “O Barco e o Rio”, segunda parceria consecutiva dela com Bernardo Abinader. Falando em parceria, aliás, o diretor também convocou Carolinne Nunes, protagonista do primeiro curta dele, o drama “Os Monstros”, tendo boas atuações em ambos os projetos.
“O Barco e o Rio” ainda traz uma equipe feminina também nos bastidores em importantes funções. Co-fundadora da Artrupe Produções Artísticas, Hamyle Nobre assumiu a produção executiva do curta, enquanto Keila Serruya, nome fundamental do cinema amazonense e para a luta contra o racismo em Manaus, também integra a produção. Vencedora do Kikito, Valentina Ricardo já havia feito um trabalho excelente em “A Goteira”, pelo qual recebeu menção honrosa no Festival Olhar do Norte 2019, e, agora, com “O Barco e o Rio”, se consolida como uma das mais promissoras diretoras de fotografia do Brasil.
Isabela, Carolinne, Hamyle, Keila e Valentina também não são exceções: junto a elas, outras mulheres brilham no cinema amazonense. São os casos, por exemplo, de Elen Linth (“Maria”), Maria do Rio (“Manaus Hot City”), Izis Negreiros (“Príncipe da Encantaria”), Cristiane Garcia (“Nas Asas do Condor”), Flávia Abtibol (“Dom Kimura”), Dheik Praia (“Mundo de Papel”), Rosa Malagueta (“A Força do Querer”), Saleyna Borges (“A Estranha Velha que Enforcava Cachorros”), Carol Fernandes (“Ex-Pajé”), Kátia Brasil (produtora dos curtas do portal Amazônia Real), a saudosa Selma Bustamante (“Purãga Pesika”), Michelle Andrews (Centro Popular do Audiovisual). Na pesquisa, temos a gigante Selda Vale da Costa, Danielle Nazareno se destaca no interior do Estado com cineclubismo e atividades formativas, enquanto na crítica temos Susy Freitas, Camila Henriques, Pâmela Eurídice e Rebeca Almeida. Com certeza, está faltando mais nomes, mas, fica a lembrança para todas.
Por tudo isso, esta é uma roda que não pode retroceder e faz-se necessário romper o ciclo de descontinuidade histórico do cinema amazonense.