Em vários momentos enquanto assistia “O Buraco”, novo filme de Zeudi Souza, ficava pensando em “Enterrado no Quintal”, de Diego Bauer. Os dois filmes amazonenses trazem como discussão central a violência doméstica. No entanto, enquanto “Enterrado” apresenta as consequências disso sobre os demais membros da família, o outro emula uma verdade crua e carregada de gatilhos.

Durante seus 20 minutos de duração, acompanhamos uma dona de casa (Jôce Mendes), vítima da violência física e psicológica imposta por seu esposo (Victor Kaleb). A nossa lente são os olhos de seu filho (Airton Guedes) que assiste a tudo através do buraco da fechadura do quarto dele. Dessa forma, há uma tensão palpável e crescente no ar que se deve, em grande parte, à fotografia e ao design de som que despertam sensações incômodas.

A fotografia assinada por Robert Coelho coloca João, o filho, em primeiro plano na narrativa. Por meio dela, entende-se que os acontecimentos são contados sob a ótica dele e como isso afeta o garoto. Seja por meio da coloração azul que preenche seu quarto enquanto ouve a discussão dos pais ou pelo boneco do mesmo tom que ele enterra no quintal, todos esses elementos simbólicos, incluindo a ausência de falas, dialogam sobre o estado emocional desse espectador da brutalidade paternal.

Nessa construção visual, duas cenas são emblemáticas e moldam o teor da violência presente no curta. Uma delas é o sono do garoto assombrado pela promessa da mãe e o momento em que a tela é dividida a fim de que o espectador tenha a real noção da crueldade física e emocional a qual a personagem de Mendes é submetida. Ambas adensam o clima já carregado da narrativa e o voyeurismo de João que o faz assistir a tudo sem reação.

O terror tocável

Tais elementos e percepções são importantes, contudo, para a construção do terror psicológico ao qual a dona de casa e seu filho vivem. O som das discussões e da agressão física, em algumas cenas produzidas pelo próprio garoto brincando com seus bonecos de super-herói, são capazes de assustar o espectador, gerar empatia com as vítimas e despertar gatilhos.

O roteiro de “O Buraco”, também assinado por Zeudi, aborda a questão da violência apelando para o lado mais vil e visceral dessa mazela social, digo isto, porque a sensação que prevalece é que estamos diante da violência e nada mais. Não há diálogos no filme que não exortem a agressão; todos os personagens são unidimensionais e o medo chega a ser tangível como na cena em que estão tomando café e o personagem de Kaleb não só agride a dignidade da esposa como mostra-lhe uma arma de fogo em uma clara demonstração de poder.

Mas, isso ao mesmo tempo em que pode ser um fator positivo para a trama, pode ser prejudicial. Enquanto assistia, fiquei pensando em como alguém que realmente passou por uma situação de agressão se sentiria diante de cenas tão fortes e impactantes.

“O Buraco” é um filme para quem tem estômago forte, sendo um terror psicológico carregado de gatilhos sobre violência doméstica. Não sei se mirava na denúncia, mas soa como se sua única linguagem fosse a violência, o que desperta reflexões, cabe saber se para o bem ou para o mal.

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