Incontáveis vezes durante 2021 escrevi que, em meio a tantas tragédias e notícias ruins, o cinema era uma das poucas coisas que o amazonense poderia se orgulhar neste ano. Afinal, semana após semana, as produções locais participavam de festivais Brasil e mundo afora, ganhando prêmios e reconhecimento em meio à crítica.

Estas participações eram reflexos claros de uma safra de ótimos filmes demonstrando o amadurecimento dos mais diversos setores do cinema amazonense, além do ecletismo da nossa produção. Tivemos de policiais noir com “À Beira do Gatilho” a obras surreais como “Graves e Agudos em Construção” passando pelo cinema fantástico de “Jamary” e suspense de “Enterrado no Quintal” a dramas sociais como “O Buraco”, “Terra Nova” e “A Bela é Poc”.

Iniciativas como webséries, cursos de formação de alto nível, novos eventos e a reinvenção do cineclube mais antigo de Manaus na era digital surgiram para mostrar como o cinema amazonense avança nas mais diversas frentes. Isso em meio a problemas das entidades públicas culturais dos governos estaduais e municipais e da desunião da classe.

O Cine Set apresenta agora 10 destaques positivos de 2021 junto com dois pontos negativos:

1. Atuações Femininas

Se o terceiro ciclo do cinema amazonense já apontava uma maior participação de mulheres atrás das câmeras com as diretoras Cristiane Garcia (“Nas Asas do Condor”), Keila Serruya Sankofa (“Assim”) e Elen Linth (“Maria”) e a diretora de fotografia Valentina Ricardo (“O Barco e o Rio”), o protagonismo feminino definitivamente ganhou as telas em 2021.

Karol Medeiros estreou com pé direito no audiovisual ao lado da onipresente Isabela Catão no excelente “Terra Nova”. Falando em Catão, ela novamente foi destaque com “Enterrado no Quintal” e breves, mas, marcantes participações em “Jamary” e “A Bela é Poc”.

Jocê Mendes brilhou com toda a exigência psicológica e física no pesado “O Buraco”, enquanto Rosa Malagueta segura “A Benzedeira” com a habitual garra. Já Júlia Kahane é intensidade pura e grande destaque do elenco do ótimo “Graves e Agudos em Construção”.

2. Pablo Araújo e as trilhas originais

Das críticas recebidas pelo Cine Set, considero extremamente justa a relativa à pouca atenção ou destaque nos nossos textos ao trabalho das áreas técnicas nos filmes amazonenses. Fica aqui a promessa para uma correção de rumo em 2022.

E isso faz-se necessário para dar valor aos excelentes trabalhos executados neste ano, por exemplo, pelos diretores de fotografia Reginaldo Tyson (“À Beira do Gatilho” e “Jamary”), Robert Coelho (“O Buraco”) e César Nogueira (“Terra Nova” e “Enterrado no Quintal”), a diretora de arte e figurinista Eliana Andrade (“Jamary”), Lua Tiomi (concepção e criação da maquiagem do figurino de Anhangá em “Jamary”), Heverson Batista no trabalho de som de diversos filmes amazonenses e muitos, muitos outros.

De todos estes grandes trabalhos, destaco, especialmente, Pablo Araújo. O guitarrista e vocalista da Luneta Mágica ficou à frente da trilha sonora original de curtas como “À Beira do Gatilho” e “Enterrado no Quintal”, sendo as composições dele fundamentais para a ambientação do público na atmosfera e universo das produções. Em um setor com muito a avançar, Pablo ajuda a apontar  caminhos ricos no cinema amazonense.

3. Curso de Pós-Graduação em Cinema

A formação acadêmica em audiovisual permanece sendo um dos maiores gargalos do setor no Amazonas. Desde o fim do curso de audiovisual da UEA, as opções para profissionais da área se especializarem ou aprimorarem seus conhecimentos precisavam passar inicialmente pelo Aeroporto Internacional Eduardo Gomes rumo a Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo ou qualquer outro lugar do Brasil ou do mundo.

2021 trouxe um alento com a realização do curso de pós-graduação em cinema promovido pela Rizoma Audiovisual, produtora amazonense comandada por Gustavo Soranz e Erlan Souza. Com carga horária total de 360 horas e ofertado tanto de forma completa como em módulos separados, a iniciativa reuniu nomes experientes do cinema brasileiro – os roteiristas Thiago Dottori (“Vips”), David França Mendes (“O Caminho das Nuvens”), o produtor Ibirá Machado (Descoliza Filmes), a diretora de arte Lia Renha (“Carandiru”), entre outros – para aulas online.

Com previsão de finalização para o ano que vem, o projeto foi contemplado no Edital da Secretaria do Audiovisual do finado Ministério da Cultura com recurso do Fundo Setorial do Audiovisual, em 2018. Que seja uma porta aberta para mais e mais cursos de formação para o setor no Amazonas.

4. Climate Story Lab, Curadorias, Websérie – as reinvenções da Leão do Norte

Pela primeira vez desde 2018, o Matapi – Mercado Audiovisual do Norte não foi realizado após duas edições presenciais e uma online por conta da pandemia da Covid-19. Poderia ser um retrocesso para a Leão do Norte, porém, a produtora formada por Carlos Barbosa, Clemilson Farias e Rodrigo Grillo se reinventou com uma série de atividades ao longo do ano.

De cara, a produtora realizou a curadoria de filmes da Região Norte para o streaming do Itaú Cultural. A parceria, aliás, foi além e ajudou a ampliar o projeto Tela Amazônia, plataforma com dados e informações sobre profissionais do audiovisual do Norte do Brasil, além de reunir estudos e pesquisas sobre o setor na região.

Paralelo a projetos como o filme em realidade virtual “A Promessa de Iracema”, o premiado curta “Meus Santos Saúdam Teus Santos”, de Rodrigo Grillo, e a websérie Retratos do Audiovisual Manauara, a Leão do Norte trouxe o “The Climate Story Lab Amazônia” para Manaus. Realizado pela primeira vez na América Latina, o evento foi um espaço de articulação, conexão e reflexão sobre como as narrativas audiovisuais podem contribuir para o debate das mudanças climáticas.

5. Cineclubismo na era digital

Com a Universidade Federal do Amazonas fechada para o público desde o início da pandemia, em março de 2020, o Cine & Vídeo Tarumã precisou achar novos caminhos para engajar tanto seus estudantes como os espectadores do cineclube.

As redes sociais foram o caminho inevitável, especialmente, o Instagram. Se no ano passado, o Cine & Vídeo encontrou dificuldades de se adaptar com um conteúdo mais trivial, em 2021, o cineclube apostou nas lives com boas entrevistas com realizadores do cinema amazonense, sendo mais um espaço de informação para a produção local.

Na reta final do ano, ampliou o escopo ao realizar bate-papos com diretores nacionais (Déo Cardoso do excelente “Cabeça de Negô”) e críticos brasileiros como Phillipe Leão e Carissa Vieira. As expectativas para 2022 são as melhores possíveis a um dos projetos mais longevos no audiovisual amazonense.

6. Dos palcos para as telas: o Ateliê 23 no audiovisual

Com oito anos de existência, o Ateliê 23 se tornou um dos grupos mais ativos e importantes da cena teatral amazonense. Em 2021, a companhia liderada por Eric Lima e Taciano Soares encontrou no audiovisual caminhos para poder seguir em meio à pandemia e ao fechamento de salas de espetáculos.

“Vacas Bravas [online]” foi o primeiro passo com a remontagem da peça para o formato digital ao ter três câmeras carregadas pelos próprios atores durante a encenação. O salto veio com o projeto “A Bela é Poc”, composto da videodança “Azul”, do videoclipe “Glowria” e do curta homônimo.

Gravado na Igreja de São Sebastião, “Glowria” causou revolta entre os cidadãos de bem de Manaus, o que não impediu de atingir a marca de quase 40 mil visualizações em dois meses no YouTube – números altíssimos para a cena independente de Manaus. Já o curta “A Bela é Poc” chega como um bem-vindo cartão de visitas do Ateliê 23 nos cinemas, especialmente, graças à grande atuação de Taciano Soares como Belinho e uma direção muito consciente e segura no que pretende atingir Eric Lima.

7. Adanilo: de “Mariguella” a “Eureka”

Protagonista de importantes curtas amazonenses recentes como “A Menina do Guarda-Chuva” e “Aquela Estrada”, Adanilo termina 2021 com ótimos frutos, mas, com um futuro ainda mais promissor pela frente. O ator pode, finalmente, ser visto em “Marighella”, obra mais popular do cinema brasileiro neste ano em que tem uma pequena participação.

Maior destaque e tempo de cena teve na segunda temporada da ótima e subestimada “Segunda Chamada”. Diante de um elenco formado por nomes como Deborah Bloch, Hermila Guedes e Thalita Carauta, Adanilo está ótimo como Anuiá, um jovem indígena que se matricula no colégio da série com o sonho de cursar Direito.

Adanilo, entretanto, não viveu apenas de lançamentos: em 2021, gravou futuros e promissores projetos, incluindo, “Castanho”, primeiro trabalho como diretor de curtas-metragens, uma participação na série “Dom”, da Amazon, e o longa “Noites Alienígenas”, do acreano Sérgio de Carvalho e estrelado pela ex-BBB Gleici Damasceno.

O maior projeto de todos é internacional: “Eureka”, co-produção entre Argentina, EUA, México e Portugal com direção do argentino Lisandro Alonso e participação de Viggo Mortensen (“Green Book”) no elenco.

8. “Manaus Hot City” e a maior conquista do ano no cinema amazonense

Caso não tivesse ocorrido a tragédia do dia 14 de janeiro em Manaus, o Cine Set teria divulgado a lista de melhores do cinema amazonense em 2020 com “Manaus Hot City” como Melhor Filme. Infelizmente, pela falta de clima, o post permanece em rascunho até hoje aqui no sistema do site.

Mesmo sendo uma produção lançada no ano passado, “Manaus Hot City” alcançou seus maiores feitos em 2021 com quase toda semana sendo divulgada uma matéria no Cine Set sobre as conquistas do filme. Chegou um momento em que deixei o parágrafo abaixo separado somente para acrescentar os eventos:

Contando apenas o segundo semestre de 2021, o curta acumula o prêmio de melhor curta-metragem de ficção do Mammoth Lakes Film Festival, na Califórnia, uma menção honrosa no Shorts México e participação no primeiro turno do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Anteriormente, “Manaus Hot City” já tivera passagens pelo KinoforumVitóriaCine PE, a retrospectiva do Cinema Brasileiro do Cinesesc e o Festival Curta Cinema 2020. 

A grande vitória foi reservada para a noite de 21 de novembro quando “Manaus Hot City” conquistou o prêmio de Melhor Curta-Metragem do Mix Brasil, maior festival LGBTQIA+ da América Latina. A obra de Rafael Ramos concorria ao lado de produções de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Norte, Piauí e Pará. Reconhecimento merecidíssimo a uma das mais belas obras do cinema amazonense atual.

9. Sol, Pipoca e Magia

Grandes nomes para a cultura e o audiovisual amazonense não faltam em nossa história, entretanto, as histórias de muitos deles são desconhecidas, restringindo-se ao ambiente acadêmico e historiadores. “Sol, Pipoca e Magia” aponta alternativas possíveis deste passado voltar a ganhar mais destaque.

Lançada neste segundo semestre no YouTube, a websérie do coletivo Planos em Sequência – grupo formado por Rod Castro, Leonardo Mancini, Emerson Medina, Diego Nogueira e Antonio Carlos Júnior – resgatou a trajetória incrível de Joaquim Marinho, português que veio para Manaus ainda na infância e formou uma geração de cinéfilos na cidade nos clássicos cinemas de rua do Centro.

São 10 episódios com média de 10 minutos de duração com montagem ágil, materiais de arquivos riquíssimos, trilha sonora pop e design gráfico capaz de atrair todo o tipo de público, inclusive, aquele que nunca ouviu falar de Joaquim Marinho. “Sol, Pipoca e Magia” merece demais ser descoberto assim como a ótima websérie “Teatro.Doc”, de Dinne Queiroz sobre os grupos teatrais amazonenses.

10. Animações Amazonenses

No podcast sobre a retrospectiva do cinema amazonense 2021, Júlia Kahane lembrou uma frase clássica ouvida muito na cidade: “é verdade que isso existe em Manaus?”. Certamente muita gente deve se perguntar isso ao ver as animações amazonenses como destaque deste ano.

Mas, sim, senhoras e senhoras, temos (boas) animações aqui no Estado. Dirigida por Humberto Rodrigues com produção da Petit Fabrik, “Stone Heart” foi longe e disputou a categoria nacional de curtas-metragens do Festival de Gramado com uma história pós-apocalíptica.

Já Bruno Vilella realizou a segunda incursão na animação com “Adeus, Querido Mandí”, curta que adapta o mito japonês de Urashima Tarô para Cosmologia do Alto Rio Negro. Gravado inteiramente no idioma Baniwa, o mais próximo do falado pelos antigos Manaós, o filme foi produzido pela Rizoma Audiovisual, co-produzido pela Cambará Filmes e animado pela Lightstar Studios.

Por fim, Rodrigo Garcia lançou “Gelo – A Fúria de Tupã”, animação de pouco mais de três minutos de duração mostrando uma Manaus no futuro sob os efeitos das mudanças climáticas. Já imaginou neve na capital amazonense?

 DESTAQUES NEGATIVOS

1) Manauscult e SEC – Dores de cabeça em profusão

Se ser artista ou trabalhar com cultura no Brasil beira à teimosia tamanha a desvalorização e dificuldades que o setor enfrenta historicamente, a situação se complica quando há um troglodita no comando do país. E piora quando há gestões estaduais e municipais perdidas para lidar com as demandas da classe.

A Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos – Manauscult começou a gestão David Almeida da pior forma possível ao oferecer cargos para políticos derrotados nas eleições de 2020 sem qualquer ligação com o setor cultural. A revolta (justa) da classe foi grande assim como a barulheira nas redes sociais, fazendo a gestão pública voltar atrás.

O clima, entretanto, ficou ainda pior quando foram exigidas notas fiscais ou recibos para os contemplados no Prêmio Manaus Conexões Culturais 2020 com recursos da Lei Aldir Blanc. O problema não é entregar comprovantes de gastos, mas, sim cobrar algo que, em nenhum momento, estava previsto no edital muito menos nas assinaturas dos contratos por parte dos contemplados. Após idas e vindas, o prazo para a entrega destes materiais se estendeu até o dia 31 de janeiro de 2022.

Ainda teve tempo para a polêmica sobre o debate do edital Zezinho Corrêa e a não realização do Conexões Culturais. O Cine Set realizou um podcast sobre o assunto com as presenças de Lucilene Castro e Zeudi Souza:

Para não dizer que não falei de flores (murchas ainda), a Manauscult promoveu encontros com a classe artística nas últimas semanas de 2021 e prometeu um trabalho mais próximo com a classe, além de buscar saídas para finalmente fazer a Lei Municipal de Incentivo à Cultura sair da estagnação. A conferir.

Quanto à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Amazonas, a treta veio no Prêmio Amazonas Criativo. Com R$ 6 milhões disponíveis, o edital acabou por misturar todas as classes artísticas disputando as mesmas categorias, ou seja, um escritor com projeto de publicar um livro concorria ao lado de uma banda financiando um novo disco ou um grupo teatral em busca de realizar uma peça e por aí vai.

Para piorar, a SEC desenvolveu o inédito modelo de inscrição Twitter com limites de caracteres para que o proponente descrevesse o que pretendia fazer. Na lista de proponentes habilitados, uma infinidade de projetos, alguns, no mínimo, estranhos (clique aqui e veja por si próprio).

Tem como ficar pior? Claro que sim!

O resultado teve de tudo: projetos sumiram na lista preliminar e, depois, reapareceram subitamente na final; candidatos tiveram notas diferentes na lista preliminar e, depois, na final, subindo ou despencando na classificação; avaliações simplistas de projetos complexos (“projeto incrível”, diz um avaliador sucinto a uma proposta que ficou no cadastro reserva), entre outros problemas.

Diante deste cenário caótico, fica a pergunta: até onde poderiam ir o cinema, a música, o teatro, as artes plásticas e demais atividades artísticas com uma gestão pública cultural mais organizada e profissional no Amazonas e em Manaus?

Resta ser teimoso…

2. Adeus do Playarte – apenas o começo?

Os cinemas de Manaus passaram praticamente os seis primeiros meses de 2021 fechados por conta do caos provocado pela pandemia. O retorno aconteceu apenas em 24 de junho com o Casarão de Ideias, enquanto os complexos dos shoppings voltaram na semana seguinte.

O receio de uma parte do público e as próprias limitações de funcionamento das salas, porém, impediram uma volta forte. Nem mesmo blockbusters como “Um Lugar Silencioso 2” (19 mil ingressos vendidos*), “007 – Sem Tempo Para Morrer” (13 mil), e “Duna” (10 mil) conseguiram reconquistar o público.

Em meio a esta crise, o Playarte encerrou as atividades no Manauara Shopping em outubro deste ano. Aberto desde fevereiro de 2010, o complexo tinha 10 salas e era um dos mais frequentados e rentáveis na capital amazonense. Chegamos ao fim de 2021 e nada sobre o futuro do espaço.

Poderia ser a única notícia ruim, porém, o Cinemark também está prestes a deixar a cidade. Após notícias em sites locais informarem (com pouca precisão e muita especulação, diga-se) a descontinuidade do complexo de oito salas, o Cine Set entrou em contato com a rede e o Studio 5 para saber sobre alguma informação oficial. O Studio 5 se esquivou e não respondeu, enquanto o Cinemark preferiu não se pronunciar, mas, não negou o fim das atividades do cinema existente desde 2001.

No Shopping Ponta Negra, o Cinépolis permanece com 4 das 10 salas fechadas desde a reabertura e um serviço longe dos áureos tempos.

Por fim, triste ver os cinemas locais completamente dominados por “Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa” a ponto de cancelarem as duas únicas sessões diárias de “Amor Sublime Amor” dias antes do previsto para a saída de cartaz do musical de Steven Spielberg.

Força cinéfilos: 2022 não deve ser nada bom…

*dados do Observatório Brasileiro do Cinema e Audiovisual

MAIS ARTIGOS NO CINE SET: